TODOROV, Tzvetan.A literatura em perigo. Tradução Caio
Meira. Rio de janeiro: DIFEL, 2009.
A literatura em perigo, de Todorov, defende uma
tese que pode assustar àqueles que se habituaram a enxergar o autor como um dos
principais representantes do estruturalismo, método que, nos estudos
literários, baseia-se numa análise estritamente imanente, sem a consideração de
fatores externos ao objeto literário. A hipótese que Todorov apresenta em tal
livro é que a literatura está perdendo seu espaço na sociedade atual porque não
consegue mais emprestar sentido à experiência pessoal de seus leitores, tanto
pela produção literária em si, orientada segundo três tendências principais: o
formalismo, o niilismo e o solipsismo, quanto por um ensino equivocado da
literatura.
Este segundo ponto
parece-me o que de mais precioso o livro tem a oferecer, e acredito que todos
aqueles que se preocupam com a questão do ensino de literatura nos anos do ensino
básico, ou melhor: com o papel da literatura na formação intelectual do
indivíduo, deveria ler esse pequeno livro, de 96 páginas. Basicamente, o
argumento de Todorov é que o que se ensina hoje nas escolas é um misto de
historiografia e teoria literárias, substituindo o contato direto com as obras
e se desviando daquilo o que seria o fundamental: o estudo do sentido das
obras, seu conteúdo semântico. Ao invés de exigir dos alunos que apreendam o
significado da obra, o que lhes permitiria relacioná-la com o mundo a seu
redor, exige-se deles que saibam operar com categorias analíticas e
historiográficas, das quais a obra literária seria apenas mera ilustração. O
equívoco é evidente: estamos tentando formar críticos literários antes mesmo de
formá-los como leitores.
Entretanto, o primeiro ponto,
o da produção literária, recebe, a meu ver, um tratamento problemático em
diversos pontos. Vamos a eles.
Todorov afirma que a
literatura contemporânea se apresenta em três vertentes que, cada uma a sua
maneira, recusam o mundo em que vivemos, impedindo uma maior familiarização do
leitor com a obra literária. Tais vertentes seriam oformalismo,
cujas obras cultivam a construção engenhosa, os processos mecânicos de
engendramento do texto, as simetrias, os ecos e os pequenos sinais cúmplices
(p. 42); oniilismo, segundo o qual
os homens são perversos, as destruições e as formas de violência dizem a
verdade da condição humana, e a vida é o advento de um desastre (idem); e osolipsismo,
que leva o autor a descrever detalhadamente suas menores emoções, suas mais
insignificantes experiências sexuais, suas reminiscências mais fúteis (p. 43).
Para continuar citando, eis a conclusão do autor: a cada vez mais, mas a
partir de modalidades diferentes, é o mundo exterior, o mundo comum a mim e aos
outros, que é negado e depreciado (p. 44). Seria esse o motivo pelo qual os
leitores atuais estão se afastando da dita alta literatura.
Não posso deixar de dar
razão a essa conclusão, pois, certamente, a literatura tem se tornado cada vez
mais difícil para o leitor não especializado. No entanto, a questão é um pouco
mais complexa, como espero demonstrar.
Como deve ter percebido
aquele que me lê, Todorov diagnostica que o mal da literatura, aquele que a
coloca em perigo, advém de sua autonomia, ou, em outras palavras, do estatuto
de autonomia do qual goza a arte e a literatura na sociedade ocidental moderna
e contemporânea. A partir daí, o autor demonstra, lançando mão de um panorama
histórico, como as reflexões acerca do objeto artístico foram gradativamente se
deslocando em direção a uma ideia de autossuficiência da arte, apropriando-se
de pressupostos conceituais até então destinados a discussões teológicas, o que
possibilitou o surgimento de um novo campo autônomo do pensamento filosófico: a
estética (o termo foi empregado pela primeira vez, segundo nos informa o autor,
em 1750, num tratado de Alexander Baumgarten p. 50). O que há de instigante
nessa argumentação é que ela nos faz pensar que, num mundo gradativamente
desencantado, a arte tenha se firmado como uma espécie nova de transcendência.
Um problema que eu vejo
nesse ponto da argumentação é algo que não está dito, mas passa por implícito.
Para descrever como se firmou a prevalência de uma ideia da arte como uma
finalidade em si mesma, a autor traça, como já foi dito, um panorama das
reflexões filosóficas acerca do assunto, permitindo que se pense a
autonomização da arte como uma consequência da teoria, como se aquela estivesse
a reboque desta. Não se trataria, portanto, de uma evolução da arte em direção a
sua autonomia, que, por sua vez, teria como desdobramento uma teorização que
procurasse formalizar conceitualmente esse movimento. Não podemos descartar o
diálogo que arte e teoria podem travar, num processo de mútuo engendramento,
mas colocar a preponderância da segunda sobre a primeira recai no mesmo erro
identificado pelo autor no ensino de literatura nas escolas: a arte aparece
como mera concretização de categorias críticas e teóricas. Mais dialético seria
supor que um mesmo substrato histórico e social permitiu à arte e à teoria
desenvolverem um conjunto análogo de problemas, mas afirmar o poder de
determinação de um sistema explicativo sobre o objeto que se procura explicar é
colocar a carroça na frente dos bois.
Logo em seguida, Todorov
esboça outra explicação complementar, infelizmente não desenvolvida, que
permitiria alguma problematização de suas conclusões. Todorov relaciona a
autonomização da arte com a perda de sua antiga representatividade pública, seja
ela eclesiástica ou cortesã. Livre das antigas obrigações que lhe impunham as
estruturas do mecenato, a arte, agora submetida às leis de um mercado
emergente, passa a responder às necessidades de um novo público, o burguês,
cuja experiência social se constitui a partir do âmbito privado:
O artista deixa progressivamente de produzir suas obras mediante a
encomenda de um mecenas, destinando-se então ao público que as adquire: é o
público quem passa a ter as chaves de seu sucesso. O que estava reservado a
poucos torna-se acessível a todos; o que estava submetido a uma hierarquia
rígida, a da Igreja e do poder civil, põe em pé de igualdade todos os seus
consumidores. O espírito das Luzes é o da autonomia do indivíduo; a arte que
conquista sua autonomia participa do mesmo movimento. Se o artista se torna a
encarnação do indivíduo livre, sua obra também vai se emancipar.(p. 53)
Aos poucos vai ficando
claro que o problema não é a autonomia em si, mas o modo como essa autonomia
passa a ser empregada a partir de um dado momento, uma vez que, como Todorov
demonstra nos capítulos seguintes, mesmo os propositores de uma arte
autossuficiente preocuparam-se em manter um tênue equilíbrio entre autonomia estética
e conhecimento, procurando conceber o estético como um tipo de conhecimento
específico e diferenciado sobre o mundo. A ruptura se daria, segundo ele, no
começo do século XX, sob o impacto das ideias de Nietzsche e da retomada de
certos pensadores radicais da autonomia estética do passado, que até então não
haviam encontrado ressonância (mais uma vez, a teorização aparece como causa do
desenvolvimento artístico). É aí que entram em cena as vanguardas, constituindo
um passo decisivo no divórcio entre arte e realidade.
Sem entrar na polêmica
quanto à relação das vanguardas com a vida[1], vemos que Todorov
distingue entre autonomia estética e esteticismo, entre uma arte socialmente emancipada
e uma arte centrada em si mesmo. Segundo Peter Bürger em Teoria da vanguarda, a autonomia descreve a situação da arte na
sociedade burguesa, mas não circunscreve necessariamente seu conteúdo; teríamos
esteticismo apenas a partir do momento em que a arte se transforma em conteúdo
de si mesma[2]. Numa formulação mais completa: Na obra de arte
esteticista, o descolamento da arte da práxis vital, que caracteriza o status
da arte na sociedade burguesa, transformou-se em seu conteúdo essencial[3].
O que me parece simplista
no modo como Todorov apresenta a dicotomia entre literatura e vida é que,
embora plausível, ela parece uma simples questão de escolha: parece que
arbitrariamente estabeleceu-se um consenso de que a arte não mais deveria
remeter-se à realidade externa, como se isso não fosse o resultado de um
processo histórico ao mesmo tempo interno e externo ao desenvolvimento
artístico. Percebendo no esteticismo e nas suas vertentes a causa do
desprestígio atual da literatura, o autor deixa de se perguntar a razão de ser
desse esteticismo e se este possui algum teor de verdade. E o que talvez seja
mais importante: ao se indagar como a literatura moderna e contemporânea
representa o mundo, acaba por se eximir de questionar o espaço que a sociedade
burguesa destinou e tem destinado à literatura, e se isso teria alguma relação
com a crescente esteticização da arte. Em suma, se a literatura está em perigo,
Todorov conclui que ela mesma se colocou nessa posição, talvez por ouvir os
conselhos perniciosos da sua irmã invejosa e má, a teoria estética.
Não é meu objetivo dar uma
resposta a esse questionamento, mas, num esboço de argumentação, poderia dizer
que à medida que a literatura vai deixando de ter uma importância social
pública, atrelando-se, por meio da leitura individual e silenciosa, à
experiência íntima e privada de seus leitores, seu campo de preocupações vai
aos poucos abandonando o mundo comum a mim e aos outros. Além disso, a
consolidação do mercado editorial, criando um público leitor formado pelos
estratos médios da população urbana ao qual a obra literária passaria a ser
destinada, propiciou uma adequação da literatura às experiências da classe
burguesa, que se pautavam por valores como o individualismo e a noção de
privacidade[4]. Nesse momento, a literatura começa a se concentrar
cada vez mais na vida íntima e psicológica dos indivíduos, fazendo dela seu
principal assunto. Uma boa exposição de como tal processo histórico determinou
a forma e o conteúdo do romance moderno pode ser encontrada em A ascensão do romance, de Ian Watt,
especialmente no capítulo 6, A experiência privada e o romance[5].
Como o objetivo desta
resenha não é traçar um panorama do desenvolvimento da literatura na sociedade
burguesa, basta destacar que o solipsismo diagnosticado por Todorov na
literatura contemporânea responde a um processo histórico-social complexo,
relacionado ao acirramento do individualismo em nossa sociedade. Do mesmo modo,
o formalismo poderia ser explicado pela crescente especialização do saber,
relacionado com o desenvolvimento da ciência moderna e do capitalismo
industrial, que instaurou uma divisão do trabalho intelectual institucionalmente
organizada. O niilismo, por sua vez, pode ser o resultado de uma frustração
histórica causada pelo progresso técnico e material da civilização ocidental,
que, além de não realizar as maravilhas que prometia, ainda teve os
desdobramentos nefastos que todos conhecemos.
Ao longo deste percurso pretendi
mostrar que o fenômeno abordado por Todorov é um tanto mais complexo do que sua
análise faz crer, e que, se hoje a literatura mais sofisticada está em perigo,
a responsabilidade não é apenas dos intelectuais e dos escritores, devendo ser partilhada
também com um público leitor cada vez mais indolente, condicionado pela
indústria cultural. O esteticismo não pode ser pensado sem se considerar o
isolamento que a literatura, como atividade a princípio não produtiva
(economicamente falando), experimenta na sociedade atual o esteticismo é, em
certo sentido, uma reação à total redução da obra literária a sua condição de
mercadoria no sistema capitalista.
A crise da literatura,
portanto, deve ser entendida dentro de um contexto histórico mais amplo, só assim
poderemos salvá-la, se é que ela precise ser salva (será que, voando abaixo
do radar, ela não estará mais segura?), e se é que talvez não seja preferível
perdê-la a salvá-la ao preço da complexidade adquirida ao longo de seu processo
de desenvolvimento. O que me leva ao último ponto.
Todorov mostrou-se, ao
longo de seu pequeno livro, comprometido com uma concepção estrita de realismo
que, logo de saída, impede a compreensão da literatura moderna e de seus
desdobramentos, sendo que nas suas categorias de formalismo, niilismo e
solipsismo se enreda muito do que de melhor o século XX produziu: Proust,
Joyce, Virgínia Woolf, Kafka, Beckett, Borges etc., autores que em sua negação
da realidade exterior (na verdade, uma negação da realidade em seu aspecto aparente)
muitas vezes atingiram aspectos mais profundos do real do que se tivessem
cedido a um realismo conformista e ingênuo, o que certamente corresponderia
melhor às expectativas de recepção do público médio. Não deixa de ser irônico
que em muitos pontos Todorov convirja com Lukács, principal representante
daquela ortodoxia marxista que o levou na juventude a se entrincheirar nas
fileiras estruturalistas[6].
Em tempo, vale lembrar que
o livro não se destina apenas ao público acadêmico, e sim a uma divulgação mais
ampla, ao que podem ser atribuídos a esquematização um tanto didática de alguns
pontos e o não desdobramento de alguns argumentos que ficam apenas sugeridos.
Referências bibliográficas
BÜRGER,
Peter. Teoria da vanguarda. Tradução
José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
HABERMAS,
Jünger. Mudança estrutural na esfera
pública. Tradução Flávio Kothe. 2ª ed. Rio De Janeiro: Tempo Brasileiro,
2003.
LUKÁCS,
Georg. Ensaios sobre literatura.
Tradução Leandro Konder. Rio De Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
WATT,
Ian. A ascensão do romance. Tradução
Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Emmanuel
Santiago, mestre em
Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de
São Paulo (USP) e formado em Letras pela Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP), com Bacharelado em Estudos Literários.
e-mail:
emmsantiago@yahoo.com.br
[1] Para
uma visão diferenciada sobre o assunto, segundo a qual as vanguardas seriam uma
tentativa de reintegrar a arte à práxis
vital, mas sem transigir no que se refere à autonomia estética, cf. BÜRGER,
Peter. Teoria da vanguarda. Tradução
José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
[2] Idem, ibidem: p. 105.
[3] Idem, ibidem: p. 108.
[4]
Quanto à formação de uma esfera privada burguesa em oposição ao espaço público
no Antigo Regime, cf. HABERMAS, Jünger. Mudança
estrutural na esfera pública. Tradução Flávio Kothe. 2ª ed. Rio De Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2003. Em especial o capítulo II, § 6.
[5]
WATT, Ian. A ascensão do romance.
Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
[6]
Para uma consideração mais justa da ideia de realismo em Lukács, cf. LUKÁCS,
Georg. Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. In: Ensaios sobre literatura. Tradução
Leandro Konder. Rio De Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, pp. 11-43.
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dEsEnrEdoS
- ISSN 2175-3903 - ano III - número 8 - teresina - piauí - janeiro fevereiro
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