Na
edição anterior de dEsEnrEdoS, estas mesmas foram respondidas pelos poetas
Alfredo Fressia, Casé Lontra Marques, Danilo Bueno, Maiara Gouveia e Paulo
Franchetti. Seguem, agora, as respostas de Ranieri Ribas, nascido na Bahia
(Barreiras) e radicado no Piauí há anos. Ribas publicou Os Cactos de Lakatus (poesia, Amálgama, Teresina, 2004) e brevemente
lançará Aos Renovos da Erva (poesia).
1.
Considerando a dimensão do país, os problemas de acesso às obras e a
dificuldade de se mapear amplamente os autores que estão escrevendo neste
momento, como você encara a denominação "poesia brasileira"? Existe
tal coisa que acaso unifique a poesia inscrita nos limites políticos desse país
além da própria denominação catalográfica?
Falar
em uma "poesia brasileira", se formos refletir acerca do rótulo em
si, é falar de um cânon nacional de leitura. Todo cânon é uma política de
leitura, e nesse aspecto, pauta-se menos nos critérios de excelência e mais nos
critérios de afirmação de uma identidade coletiva. Esta criação do romantismo
teria, em sua origem, uma função paidêutica, e seria, portanto, a expressão
mais evidente da Bildung em sua
designação originária, isto é, como formação da pessoa. Estamos falando,
portanto, de uma espécie de humanismo vernacular. Esta foi, talvez, a grande
idéia da semana de 1922, seguindo o projeto político de afirmação dos Brasis
por José de Alencar: pensar a literatura brasileira para além de seu caráter
heterônomo, lusitano, romper com o sermo
nobilis da tradição portuguesa. Para mim, como poeta, isso não tem a menor
relevância. Os cânones nacionais têm para mim uma função pedagógica e
taxonômica. Para quem escreve poesia, a lógica deste tipo de reflexão é inócua,
estéril. Se estou tentando ler a poesia pastoril de Eichendorff, pouco me
importa se ele cabe ou não no rótulo "poeta alemão" ou "poeta
romântico". Me interessa o espírito que ali se encerra, o rigor da
versificação, as faturas poéticas como um todo.
No
caso do Brasil, considero que há uma subversão dos critérios de eleição dos
melhores, ou dos mais relevantes poetas brasileiros nos últimos anos. A geografia
brasileira tornou-se uma espécie de geopolítica da arte. Como um poeta da
grandeza de Nauro Machado é tão pouco reverenciado? Ninguém faz sonetos melhor
que ele desde Fernando Pessoa, quiçá, desde Bocage. Uma obra imensa, um poeta
que estabeleceu um pacto mefistofélico com a poesia. Não é estudado, não é
lido. Em contrapartida, vejo vários poetas liliputianos do eixo Rio-São Paulo
grassando em revistas com entrevistas como se fossem sumidades literárias. Há
amontoados de teses acadêmicas sobre poetas e prosadores sem mérito, porém
célebres. Esquecemos de Nauro Machado, Alberto da Cunha Melo, H.Dobal, Max
Martins, Zila Mamede, Henriqueta Lisboa. Alguns críticos, como Ivan Junqueira,
perceberam que a melhor poesia brasileira hoje está no Nordeste. Mas há poetas
no Norte, no Centro-Oeste. Seria um trabalho hercúleo fazer este levantamento.
Com a internet tudo ficou mais fácil, mas é preciso romper com o monopólio
geopolítico e artístico do Sudeste. Isto ocorrerá, e estou sendo otimista, à
medida que o Nordeste se desenvolver econômica e culturalmente. O mercado
editorial se expandirá, sobretudo se o Brasil encampar um projeto sério para a
educação.
Acredito
que os grandes poetas raramente surgem em grandes centros urbanos, onde a
experiência da cultura burguesa padroniza as visões de mundo, homogeneíza a
experiência humana em um lugar vazio e soberano. Walter Benjamin refere-se em
certo ensaio à ojeriza de Goethe por cidades com mais de 10.000 habitantes! Em
verdade, a grande poesia nasce -- sobretudo em nossa época pós-moderna -- da
experiência do processo de secularização. Quando uma determinada cosmovisão
enfrenta seu próprio desfalecimento diante de uma nova ordem emergente, neste
momento surgem os grandes poetas. Por isso quero estudar a poesia iraniana
hoje. Acredito que estes países que ainda não completaram integralmente o
processo de secularização e desencantamento do mundo irão nos dar grandes poetas.
Os países do Oriente Médio, os países africanos e parte do Leste Europeu seriam
os lugares onde surgirão estes poetas. Um poeta como Drummond, por exemplo, só
pode ser entendido como homem mineiro, de família católica patriarcal ortodoxa
em conflito permanente com a experiência de desfalecimento dessa cosmovisão.
Aqueles que já nasceram no novo mundo, ou seja, nós, temos muito pouco a
acrescentar poeticamente neste aspecto. É quase impossível criar boa arte,
sobretudo poesia, sem o substrato da experiência vital.
Quando
leio a maior parte dos poetas brasileiros de hoje me pergunto como eles se
deixam ser presa fácil desta enfadonha repetição de faturas poéticas, essa estandardização.
Na verdade, somos títeres do espírito epocal, do Zeitgeist. Creio ser mais fácil haver um grande poeta vindo de
Itabira, Codisburgo ou da Serra da Barriga em Alagoas do que de São Paulo ou
Tóquio.
Esta
questão me remete ainda ao problema do regionalismo na literatura brasileira.
Acredito que a questão regionalista é um engodo gramatical e que ela está sendo
reavivada de forma ressentida por conta do contexto político brasileiro da era
Lula, onde o acirramento da questão Nordeste (a questão setentrional para
parodiarmos Gramsci) se tornou politicamente ativo. O que antes era latente, o
embate entre o ressentimento nordestino e a soberba do Sudeste, agora se
difundiu na luta política, eleitoral e cultural. Afirmo que esta questão é um
engodo gramatical porque ela não tem procedência factual, é movida por estigmas
e ressentimentos. Será que os americanos lêem Faulkner como um autor
"regional"? E os ingleses, interpretam o substrato folclórico
irlandês na obra de Joyce como "regionalismo"? Gilberto Freyre é um
antropólogo "regionalista", pernambucano? Qual é a proficuidade da
pergunta quanto a ser "regionalista" ou não? Ser regionalista
significa negar uma literatura "cosmopolita"?
Pra
mim estas questões são um subproduto da estupidez de uma luta política sem
vencedores.
Mas
acredito, da perspectiva de quem produz literatura, prosa ou poesia, que a
bandeira do neo-regionalismo rendeu bons frutos. Me vem à memória o nome de
Francisco J. C. Dantas. A ideologia regionalista pode ser vista como uma tentativa
de salvaguardar a literatura brasileira de sua atual esterilidade urbanóide.
2.
Já se tornou corriqueiro para o brasileiro assumir nossos profundos e
perpetuados problemas de ordem varia na esfera macropolítica, social,
bioeconômica, midíatica, e outras, mas sempre pareceu escapar desse conjunto problemático
não só a produção artística quanto à inteligência crítica que a legitima. Até
que ponto o que chamamos nosso legado artistico-cultural também faz parte de um
complexo sistema de dominação neocolonial senão mesmo o duplicando na esfera da
representação simbólica? O que você pensa sobre essa hipótese?
O
problema é que a arte é inútil para aqueles que têm uma percepção vulgar do
mundo. A arte é vista com um mero ornamento, muitas vezes despiciendo. O Brasil
é hoje um país de rastaqüeras, não há mais uma elite cultural dentro da esfera
política. Não podemos esperar uma visão cultural abrangente e invulgar de
nossos legisladores ou de nossos policy-makers.
E isso é um retrato do Brasil como um todo, não apenas da classe política. Não
há mais lugar para um Otto Maria Carpeaux em nossos jornais diários ou em nossos
hebdomadários. A inteligência brasileira está guetizada, segregada da grande
mídia. Nossa esfera pública foi devorada pela indústria cultural e o capital
cultural das periferias brasileiras colonizou as classes médias. Somos um país
padronizado pelo gosto cultural da periferia; não há qualquer projeto político
para tirar essas massas de sua situação de analfabetismo instrumental.
Me
parece bourdieusiano (ou talvez, para ser mais preciso, me parece sartreanismo
pós-Fanon) em demasia enxergar em "nosso legado artistico-cultural" a
reprodução deum "complexo sistema
de dominação neocolonial". As culturas locais como tradições construídas
segundo uma dada macronarrativa estão, desde as grandes navegações, em
permanente contato com as culturas eurocêntricas. Não vejo grande vantagem em
almejar uma cultura autóctone em sentido puro, ou melhor, em um sentido
calibânico. Quando li o último Husserl, entendi que as lições de Ariel, para
usarmos esta metáfora, são um legado do qual não podemos nos evadir. Já estamos
aculturados há pelos menos uns dois séculos. E enquanto civilização, usando licenciosamente
este caro termo, o Brasil é um experiência histórica autêntica. Talvez a mais
autêntica da América Latina. Somos uma cultura repleta de idiossincrasias, mas
todas elas se exprimem no cerne de instituições oriundas do legado europeu. E
esta simbiose cultural é nosso verdadeiro legado. Fusão de horizontes.
Como
poeta, deveria eu recusar Ezra Pound como autor de referência porque ele era
ítalo-americano fascista? Não concordo com essa busca da pureza. As identidades
culturais devem enfrentar o processo de secularização eurocêntrico e devem
subsistir autonomamente, e não pela intervenção do artifício do Estado, ou pela
resistência de uma inteligência preservacionista.
E
devo dizer, mais uma vez que, como poeta, esta consideração é-me irrelevante.
3.
O livro impresso continua sendo o veículo fundamental da poesia?
Claro.
O livro é uma tecnologia que não foi superada e talvez jamais o seja. Ele é
concreto, tem forma, cheiro, é palpável, atrativo e facilmente transportável.
As infovias são um canal de divulgação, mas a palavra impressa é
insubstituível. O livro não precisa de download, atualização, PDF, Kindle ou
computador. É uma tecnologia independente e permanente. Posso guardá-lo por
anos a fio, sua resistência é comprovada pela experiência. E a humanidade levou muito tempo para chegar a
este formato, passando dos papiros ao códice. Com o livro prescindo de conexão
e de qualquer outra plataforma ou interface. Ademais, as mídias eletrônicas são
feitas para que a informação seja volátil, efêmera, e tudo se desfaça numa
rápida obsolescência. Tudo se desmancha no ar, nada é sólido. São softwares. A informação se torna rápida,
difusa e fácil, mas também fluída, fugidia e inconfiável. Posso baixar agora a
poesia completa de Gregório de Matos, mas não posso confiar que a
"edição" seja fidedigna. E amanhã, se meu computador queimar o HD, o
que farei? Por isso, penso que estas novas plataformas de leitura da mídia
eletrônica possam ser usadas como complemento da informação, mas não como
fundamento desta. As tecnologias eletrônicas serão superadas em curto espaço de
tempo, mas o livro cristalizará toda sabedoria humana por séculos.
4.
Atualmente, o poeta deve necessariamente ser um teórico, um crítico de poesia?
E até que ponto a preocupação teórica influencia sua produção literária?
Sempre
escrevi crítica como autocrítica. Talvez por isso meu primeiro e segundo livros
sejam completamente diferentes. Acredito que a hipertrofia crítica paralisa o
processo criativo. Contudo, nem por isso o poeta deve se alienar. O poeta deve
ler poesia, estudar poesia, exercitar suas técnicas de versificação da mesma
forma que um pianista faz exercícios para apuração de sua técnica. Aliás, a
exigência técnica de versificação e metrificação requeridas de um poeta são
infinitamente menores que as exigências técnicas de um músico erudito, por
exemplo. Admira-me o fato de que nossos poetas tenham hoje pouco domínio de
versificação. Sequer já ouviram falar dos muitos tratados em língua portuguesa.
Esse é um tipo de negligência que atinge mais a poesia do que as outras artes.
Embora
o poeta não deva atingir esta hipertrofia crítica a que me referi, entrando
nesse imenso labirinto que é a teoria literária, creio que deva ter certo nível
crítico. Afinal, o artista exerce seu ofício pela consciência e não pela
alienação. Muitos poetas hoje escrevem para dar satisfação às demandas da
teoria literária. A beleza não pode ser extorquida pelos conceitos. Este é o
risco do demônio da teoria. A consciência crítica repousa sobre a superfície
dos entes, a criação poética é que dispõe-nos à presença do Ser. A consciência
crítica quer capturar o Ser, mas o Ser não está à disposição da vontade, ele é
soberano, incapturável. Por isso, quanto maior a hipertrofia da consciência
crítico-teórica, mais estéril o artista. Não podemos capturar o Ser por gesto
da consciência. A ingenuidade é uma das condições mais relevantes do processo
artístico criativo. Acho que já entrei num acordo com meu demônio teórico. Ele
lá, e eu cá. Mas eu tive que passar por um longo processo de desintoxicação,
sobretudo dos vícios do concretismo. Hoje posso dizer que estou reabilitado.
5.
O fato de a poesia ser pouca lida (em comparação com gêneros como o conto e
romance) é um fator positivo ou negativo à criação poética?
O
velho tema da abolição do sufrágio do número. Talvez Paul Valéry tenha
explorado pouco o fato de que há um caráter aurático nessa abolição. Mas todo
poeta gostaria de ser lido. A poesia brasileira sempre teve seus poetas
carismáticos: Drummond, Vinícius, Bandeira, Augusto dos Anjos, Castro Alves.
Entre
nós, esta abolição tem causado desconforto, exceto pelo caráter aurático que
ela espraia. Só o difícil é estímulo para o poeta, concordo, mas não podemos
abdicar da busca da intersubjetividade, da alteridade e da comunicação.
Acredito que, no caso da poesia brasileira contemporânea, nossa baixíssima taxa
de leitores decorre não apenas do deslocamento da arte poética de seu lugar
soberano na cultura brasileira, como fora desde o romantismo (a música popular
brasileira expropriou dos poetas este lugar), como também do fato de que nossos
poetas hoje não têm sabedoria, são homens que não tem o que dizer, o que
acrescentar. A poesia de Drummond é a poesia de um sábio, de alguém que fala
como porta-voz de uma experiência partilhada pela comunidade de leitores. O
mesmo pode ser dito de Bandeira. Em matéria de poesia, só a sabedoria cativa.
Como
a sabedoria perdeu seu lugar soberano entre os poetas brasileiros, nossa poesia
passou a ser um jogo lúdico-semântico auto-referente. A poesia portuguesa, em
comparação, não perdeu essa tradição, a reforçou. Podemos ver sabedoria em Herberto Helder, em Daniel Faria, em Fernando Echevarría,
em Fiamma Hasse,
em Al Berto,
em Ramos Rosa.
A
última edição de "Ou o poema contínuo" de Helder esgotou-se em dois
meses em 2009. Ele é lido, e isso não menoscaba sua poesia, pelo contrário, a
engrandece. A escrita sempre é um gesto eucarístico, uma partilha. Ninguém
escreve para se reservar, mas para ser lido. Ser lido é fazer amigos, é
desdobrar os laços da amizade.
A
poesia brasileira precisa reencontrar seu lugar soberano. E para ser soberano é
preciso ser lido.
____________________
Ranieri Ribasé cientista político
e poeta. Autor de Os Cactos de Lakatus (Amálgama, 2003)ede Ezra Pound As máscaras
doutrinárias do esteta (Fundac, 2003). Professor da
Universidade Federal do Piauí. [ranieriribas@yahoo.com.br].
Adriano
Lobão Aragão
é poeta e professor. Autor de Entrega a Própria Lança na Rude Batalha em que Morra, Yone de Safo
e as cinzas as palavras. blog: Ágora da Taba
Sebastião
Edson Macedo
é poeta e ensaísta, autor de: para apascentar o tamanho do mundo (Oficina
Raquel: 2006); e cego puro sol (UFRJ/FL: 2004). Nasceu no interior do Piauí em
1974. Atualmente mora no Rio de Janeiro, onde se tornou Mestre em Estudos Literários
Portugueses pela UFRJ.
Wanderson
Lima
é poeta e ensaísta. Professor da Universidade Estadual do Piauí - UESPI e
doutorando em
Literatura Comparada pela UFRN. Autor, entre outros, de
Reencantamento do mundo: notas sobre cinema (amálgama, 2008), em co-autoria com
Alfredo Werney. blog: O Fazedor
[revista dEsEnrEdoS
- ISSN 2175-3903 - ano III - número 8 - teresina - piauí - janeiro fevereiro
março de 2011]