Meu
interesse por Existencialismo poderia remontar à infância, embora eu então ignorasse
não só o nome da coisa, como tudo o mais. Início dos anos 50, meu primeiro
baile de Carnaval. Surpreendeu-me a animação invulgar com que as pessoas
cantavam certa marchinha, que eu desconhecia. Atraiu-me sobretudo uma passagem
enigmática, que às vezes soava existe e se alista, às vezes existe sem a
lista, eu não conseguia entender. Mas entendia bem a aura de deboche e atrevimento
que pairava no ar. Os carnavais daquele tempo eram extremamente pudicos, mas a
marchinha não deixava dúvidas quanto a estar lidando com matéria proibida.
Falava de uma tal Chiquita Bacana, que não usava vestido nem calção, vestia-se
com uma casca de banana e promessa de liberdades infinitas! só fazia o que
o coração mandava.
Soube
depois que a marcha é de Alberto Ribeiro e João de Barro, o Braguinha, e fez sucesso
anos a fio, desde 1949, quando foi gravada pela primeira vez por Emilinha
Borba. A passagem enigmática dizia simplesmente existencialista:
Chiquita
bacana
lá da Martinica
se veste couma casca
de banana nanica.
Não
usa vestido, oi,
não usa calção,
inverno pra ela
é pleno verão.
Existencialista
com toda a razão,
só faz o que manda
o seu coração.
Só bem mais tarde ocorreu-me associá-la ao
filósofo, romancista, contista, teatrólogo e ativista político Jean-Paul
Sartre, que eu tinha aprendido a admirar, já nos anos de faculdade, a partir de
romances como A náusea, passando depois pelos contos, pelo teatro, pelo
ensaio famoso sobre Baudelaire, os textos de divulgação filosófica, como O
Existencialismo é um Humanismo, os textos mais densos como O ser e o
nada, ou a obra que marcou mais de uma geração, Que é a literatura?
Sartre andou pelo Brasil no início dos anos
60, mas, que eu saiba, ninguém se lembrou de lhe apresentar a musa tropical do
Existencialismo, a nossa Chiquita Bacana. Teria sido, creio, um encontro
memorável. O Existencialismo teve sua musa parisiense, a cantora e atriz
Juliette Greco (um de seus sucessos, nos anos 50, foi a canção
Déshabillez-moi, Dispam-me, que os adolescentes de então ouviam, digamos,
em transe), mas a nossa Chiquita teria ido mais diretamente ao ponto.
Guiar-se
pelo coração, como apregoa a marchinha, tem que ver com a autenticidade, a
ideia da existência como jogo limpo, sem trapaças, ideal buscado pela maioria
das personagens sartrianas, e por ele próprio, enquanto intelectual
comprometido com as causas do seu tempo; abdicar de vestido e calção remete ao
sentido profundo da liberdade com que o indivíduo autêntico assume e usa o
seu próprio corpo, ligando pouca ou nenhuma importância aos preconceitos de ordem
moral. Chiquita é irreverente, insubmissa, revolucionária. Anuncia uma nova
moral, uma nova ordem de coisas, não por meio de doutrinas complicadas, mas do
exemplo. E, acima de tudo, não abre mão da capacidade de raciocinar e refletir;
suas atitudes são determinadas pela consciência: ela é existencialista com
toda a razão.
Durante
muito tempo, existencialista foi sinônimo de moderno e avançado. Mais (ou
menos?) do que uma filosofia, foi um estilo de vida, e virou moda. Em várias
partes do mundo, as pessoas, antes de tomar suas decisões, ficavam à espera do
que Sartre e companheiros diriam. No caso de Que é a literatura? (a
primeira edição em livro é de 1948), Sartre defende o princípio da
responsabilidade social do escritor, isto é, o escritor como cidadão consciente
e participante, que põe o seu talento a serviço das aspirações comuns a toda a
sociedade, e muita literatura passou a ser produzida, em todo o mundo, para
atender aos preceitos do pensador francês.
Há
muito, o Existencialismo deixou de ser moda, ninguém mais se lembra de Juliette
Greco ou de Chiquita Bacana. O modelo internacional de boêmio responsável,
que Sartre exibiu pelas vitrinas do mundo durante cerca de três décadas, parece
que não tem mais o mesmo poder de sedução.
Algo
se perdeu?
2
O
ano, 1932. O cenário, uma das mesas do Bec de Gaz, discreto café de
Montparnasse, bairro de Paris, frequentado por intelectuais, escritores e
boêmios em geral. Três
jovens na faixa dos vinte e poucos (Raymond Aron, Simone
de Beauvoir e Jean-Paul Sartre), estudantes de filosofia formados havia pouco,
reúnem-se ali, em torno dos seus cálices de coquetel de abricó, especialidade
da casa, e discutem madrugada afora os destinos do mundo. Recém-chegado de
Berlim, onde passara o ano estudando fenomenologia com Edmund Husserl,
Raymond a certa altura empunha o seu cálice e, entusiasmado, dirige-se a
Jean-Paul: Veja só, meu amigo. Se você for fenomenologista, poderá falar
deste coquetel e fará filosofia.
Alguns
anos depois, começa a chegar uma leva de curiosos e turistas, obrigando os frequentadores
habituais a trocar o Bec de Gaz pelo Le Flore e depois pelo Coupole. Mas a cena
que celebra o casamento da fenomenologia com o coquetel de abricó será gravada
para a posteridade por Simone de
Beauvoir, uns anos mais tarde, em um de seus livros de memórias. Ela esclarece
que Jean-Paul ficou pálido de emoção, pois o que Raymond anunciava, com tanta
simplicidade, era exatamente o que o amigo vinha buscando, havia anos: falar
das coisas como se as tocasse, e ainda assim fazer filosofia. Estava nascendo
aí, do encontro entre a inquietude de Jean-Paul e o método fenomenológico de
Husserl, uma das mais controvertidas correntes filosóficas do século xx, o Existencialismo, em sua versão
francesa.
A
inquietude de Sartre, partilhada pelos companheiros de geração (além de Simone
e Raymond: George Pulitzer, Paul Nizan, Maurice Merleau-Ponti, Jean Hyppolite
e outros), decorria da frustração que quase todos sentiam em relação à
filosofia conservadora que lhes tinha sido ensinada na École Normale
Supérieure, de Paris, uma das mais prestigiadas de toda a Europa, à qual Nizan
se referia como dita normal e pretensamente superior. Sartre não aceitava
que a filosofia devesse limitar-se à especulação meramente abstrata, alheia
aos fatos da vida, às circunstâncias históricas em redor. Do ponto de vista
teórico, o grupo se debatia com o impasse clássico entre realismo e idealismo.
Para
os adeptos do primeiro, a realidade é a soma de dados objetivos, que têm
existência autônoma, independente do sujeito que os observa; já para os
idealistas, a realidade é a somatória dos conteúdos da consciência, isto é, as
essências, que o sujeito apreende por trás da aparência objetiva das
coisas. Sartre não se conformava em ter de optar por uma dessas posições:
nenhuma o satisfazia. Ele sabia que devia existir uma saída, uma terceira
via, e foi encontrá-la na fenomenologia de Husserl, segundo a qual toda
consciência é consciência de
alguma coisa. A fórmula reveladora chamou a atenção do jovem Sartre para a
possibilidade de superar o dualismo real x ideal, conciliando aparência e
essência. Para Husserl, a realidade não deve ser entendida só como dados
objetivos nem só como conteúdos da consciência, mas como fenômenos. O ato de conhecimento
vem a ser, então, o aproximar-se intencionalmente de cada fenômeno, tal como
este aparece para a consciência, e tentar descrevê-lo em sua singularidade. A
fenomenologia é um método essencialmente descritivo.
No
caso da cena lembrada por Simone, Sartre coquetel de abricó na mão deveria indagar: o que torna este cálice
um objeto singular, único, distinto dos demais fenômenos que me rodeiam, incluindo
todos os outros cálices? De acordo com o método proposto por Husserl, Sartre
deveria colocar entre parênteses o seu cálice, ou qualquer outro fenômeno que
estivesse interessado em conhecer, a fim de que os aspectos acidentais fossem
deixados de lado e sua essência, ou seu eidos, se revelasse em plenitude,
como ensinava a redução eidética do método husserliano.
Sartre,
é claro, não tencionava passar o resto da vida reunido com os amigos em mesas
de bar, analisando fenomenologicamente objetos como um cálice, uma garrafa ou
um maço de cigarros. No entanto, o Existencialismo ganhou desde o início uma
acentuada aura boêmia. Os mais conservadores consideravam-no uma desculpa
pseudofilosófica para beber e passar as noites jogando conversa fora, em
ambientes enfumaçados e pretensamente rebeldes. Na altura da Segunda Guerra
(1938-1945), a fama do Existencialismo já se espalhara, e o movimento era visto
mais como estilo de vida do que como filosofia, um estilo anticonvencional,
adotado pelas pessoas como forma ostensiva de contestação da moral burguesa,
dos valores vigentes, de todo o sistema. Mas o que Sartre tinha em mente era
mais ambicioso: compreender o mundo em redor; investigar, por exemplo, as
causas e as razões possíveis da crise que se abateu sobre a Europa, em seguida
à guerra. Mais do que compreender, ele pretendia interferir na realidade, dar
sua contribuição para que o destino da sociedade não ficasse entregue ao
capricho dos governantes e aos interesses imperialistas das grandes potências,
sempre ávidas de mais lucro e mais poder, indiferentes aos anseios da sociedade
como um todo.
Desde
a juventude, ele tinha sido um ativista radical, simpatizante do movimento anarquista,
à procura de novos rumos para uma sociedade que ele considerava decadente e
esgotada. Por isso encaminhou-se para a filosofia, certo de ali poder encontrar
pelo menos os sinais que lhe indicassem onde procurar esses novos rumos. E
logo decepcionou-se, vindo a adquirir funda aversão à ideia do filósofo de
gabinete, que a École Normale tentava impor a seus alunos. O que ele almejava
era ser um filósofo do seu tempo, empenhado nas questões concretas da
sociedade; sua ambição era uma filosofia que ajudasse a melhorar a qualidade
de vida das pessoas, tornando-as mais conscientes, mais livres e mais humanas,
e não uma disciplina acadêmica, voltada a especulações meramente teóricas.
E o
tempo vivido por Sartre, desde a juventude, nos anos 20, até a morte, em 1980,
foi um tempo dos mais conturbados, marcado sobretudo por guerras, revoluções e
desastres coletivos, cujos intervalos não passavam de pausas breves, durante as
quais rondava a ameaça de mais desastres e mais guerras. Ainda que tivesse
mudado de ideia, teria sido praticamente impossível para ele ficar trancado num
gabinete. Seu tempo foi um tempo de lutas e ele desde cedo entendeu que seu
papel, como intelectual, era o de um lutador e não o de alguém que observa à
distância. Mas antes de ir à luta era preciso munir-se do instrumental teórico
necessário, construir os fundamentos filosóficos que servissem de base à sua
atuação como intelectual participante.
Por
isso os anos dedicados ao estudo de Husserl e da fenomenologia, assim como à
ontologia existencial de Martin Heidegger, outro pensador alemão, em quem Sartre encontra
estimulantes análises de temas como o vazio, o nada, a angústia, e a morte
esta encarada como a única certeza que acompanha o ser humano, em meio ao
absurdo da existência. Sartre encontra em Heidegger a confirmação do seu ateísmo,
e a ideia de que o mundo sem Deus é um mundo sem sentido.
Dessa
forma, a missão do filósofo, o filósofo prático que Sartre ambicionava ser,
consistia em denunciar as falsas verdades e a hipocrisia com que as pessoas se
iludem, buscando fugir aos compromissos da consciência. Um tema caro, a Sartre
e a Heidegger, é o da inautenticidade, característica do homem
superficial, que não assume a sua condição de ser livre, e responsável. (Para
Sartre, o homem está condenado
a ser livre.) Em seguida, o propósito é colaborar para a construção de um novo
sentido para este mundo esvaziado de sentido. Com isso em mente, Sartre
participou com grande empenho, até pouco antes de morrer, em 1980, de todos os
magnos acontecimentos do seu tempo, no plano nacional e internacional. Mais
de meio século de atuação exemplar, sobre um período dos mais conturbados da
história contemporânea.
3
Foi
em meio ao cenário desolador da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) que Sartre
fez sua educação básica e formou seu espírito pacifista, amante da liberdade,
em que entrou boa parcela da apreensão e do ceticismo que tomaram conta das
consciências nesses anos. Em 1932, enquanto Sartre e Aron se interessavam por
fenomenologia, reiniciava-se na Alemanha a escalada armamentista, com a
ascensão de Hitler e do partido nazista. Mais cedo do que os mais pessimistas
poderiam esperar, a Europa é assolada por outra guerra, que se estende até
1945. O poder de destruição, dessa vez, será muito maior: calcula-se em mais
de 40 milhões o número de mortos oito milhões de chineses (desde a guerra
com o Japão), seis milhões de judeus, cinco milhões de poloneses, quatro
milhões e quinhentos mil alemães, dois milhões de japoneses, um milhão e meio
de iugoslavos e assim por diante.
Chamado
a servir, em 1939, Sartre engaja-se no exército como meteorologista, achando que
a guerra seria de curta duração. (Quando teve conhecimento do pacto
germano-soviético, logo após a invasão da Polônia, anotou num caderno: Eis-me
curado do socialismo, se tal era necessário.) Em 1940, é capturado pelos
alemães, em Padoux, na Lorena, nordeste da França, e em seguida é levado para
um campo de concentração, em Trèves ou Trier, já em território alemão, onde
permanece quase um ano, detido. Ocupa o tempo estudando Heidegger, realizando
montagens teatrais com os demais prisioneiros e tramando a evasão. Falsifica
seus documentos, faz-se passar por civil e, alegando problemas de saúde,
consegue libertar-se, em 1941, retornando a Paris.
Logo
depois, em novembro de 1942, Sartre e compatriotas começarão a viver uma experiência
dramática: o exército alemão avança, Paris é ocupada, o país inteiro é
submetido ao poder nazista. Os franceses não têm como defender-se e dividem-se.
Parte da população acompanha o presidente Laval e o general Pétain, que
formam o governo de Vichy, disposto a colaborar com os invasores. Outra parte
ingressa na clandestinidade, como De Gaulle, que se exila na Inglaterra, e
tenta organizar a Resistência, passando a lutar ao mesmo tempo contra os
alemães e contra os franceses colaboracionistas. A ocupação alemã se
prolonga até 1944, quando os aliados invadem a Normandia e forçam a rendição
do exército nazista.
Esse
período será de intensa atividade para Sartre: encena várias peças de sucesso,
publica o primeiro volume da trilogia de romances Os caminhos da liberdade,
começa a escrever sua obra máxima, no terreno filosófico, O ser e o nada,
publicada em 1944, e em 1945 sai o primeiro número da revista idealizada e
dirigida por ele, Les temps modernes. Toda essa produção, direta ou
indiretamente, tem o caráter de literatura de combate e denúncia, a sua
colaboração à Resistência.
Logo
depois da guerra, ele começa a publicar uma série de ensaios e textos variados,
sob o título geral Situations, cujo segundo volume, de 1948, contém um
único e longo ensaio (que já tinha sido divulgado no ano anterior, em edições
sucessivas da revista Les temps modernes), Que é a literatura?, em que ele sistematiza a concepção
de literatura engajada que vinha pondo em prática fazia anos. O ensaio resulta
da necessidade que Sartre sentiu de esclarecer seus pontos de vista e, ao mesmo
tempo, responde a uma série de ataques que suas ideias e atitudes vinham
suscitando. Em linhas gerais, o livro faz um diagnóstico apaixonado da situação
do escritor em tempos de guerra, isto é, tempos em que os mais caros ideais
humanos se veem seriamente ameaçados.
Terminada
a guerra, já se anuncia a divisão de Berlim em dois setores, o oriental e o ocidental,
separados por um muro, e em seguida instala-se o que veio a chamar-se Cortina
de Ferro, linha imaginária que passou a separar a União Soviética do bloco
ocidental. Tem início a Guerra Fria, que força o mundo todo a optar entre
socialismo e capitalismo, como esferas polarizadas e excludentes. Em 1949,
tinha sido implantado na China o regime comunista, com apoio da urss. Mas em 1960, Mao Tsé-Tung, homem
forte do regime, rompe com a União Soviética, a cujos dirigentes acusa de
revisionismo, e em 1966 desencadeia a chamada Revolução Cultural, que radicaliza
as diretrizes do comunismo de linha soviética. O movimento repercute em todo o
mundo, oferecendo às esquerdas internacionais uma nova alternativa, o maoísmo.
Tendo
optado pela participação política, desde o final da Segunda Guerra, Sartre
vai-se empenhar, com estrita coerência, em praticamente todos esses
acontecimentos, a fim de pôr em prática a função do escritor, tal como a
definira em Que é a literatura?, procurando manter-se sempre na crista
da atualidade, em escala mundial. A imprensa internacional divulgou com
destaque, por exemplo, o apoio que ele fez questão de dar pessoalmente, em
fevereiro de 1960, a
Fidel Castro, em Havana, de onde enviou ao France-Soiruma entusiasmada reportagem sobre a
revolução cubana. O escritor repetiu a dose em março de 1975, locomovendo-se a
Lisboa, a fim de hipotecar solidariedade ao mfa,
Movimento das Forças Armadas, que menos de um ano antes tinha dado fim à
ditadura salazarista em
Portugal. Mas nessa altura a imprensa já não deu ao gesto o
mesmo destaque, ou porque considerou a revolução dos Cravos menos relevante
que a cubana, no plano internacional, ou porque o prestígio de Sartre, que
vinha declinando desde a rebelião estudantil de maio de 1968, já não era o
mesmo.
No
final dos anos 60, a
Guerra Fria já dava mostras de esgotamento; o império soviético começava a
ruir, com sinais ostensivos da crise econômica e política que vinha se
desenrolando internamente desde a invasão da Hungria pelo exército vermelho,
em 1956, operação que se repete na Checoslováquia, em 1968, e vai repetir-se,
mais tarde, em vários outros enclaves da ex-urss.
Naquela época, a opinião mundial começou a libertar-se do jogo maniqueísta a
que fôra habituada por mais de duas décadas; as pessoas não se sentiam mais
obrigadas a alinhar-se, imediata e resolutamente, à esquerda ou à direita. O
xadrez político foi-se tornando cada vez mais complexo e globalizado, cada
vez menos ideologizado, pondo em questão as posições defendidas por Sartre em
sua concepção do escritor engajado.
Tendo
morrido em 1980, ele não chegou a presenciar o desfecho do ciclo histórico por
ele vivido intensamente, um ciclo que ele próprio ajudou a consubstanciar, com
sua obra e seu exemplo pessoal, e de que chegou a ser uma das figuras mais representativas.
Em 1989 é derrubado o muro de Berlim e já não faz mais sentido falar-se em Guerra Fria; o mundo
não está mais dividido em dois blocos monolíticos; a Cortina de Ferro todo um
estilo de época passa a ser coisa do passado.
4
No
dia 22 de abril de 1980 The Boston Globe anunciava, na primeira página,
o falecimento de Sartre. A notícia, breve, remetia para matéria específica,
no segundo caderno, sob o título A creator of our times, de evidente
sentido duplo: Sartre foi um criador nos
nossos tempos, ou criou esses tempos? O necrológio repetia o que todos sabiam:
a infância triste, a juventude agitada, a participação na Resistência, a
longa carreira de escritor e ativista político, com destaque para algumas
obras e passagens marcantes. Um registro sóbrio e moderado, enfim. Por isso
surpreende, no fecho do artigo, a explicitação do duplo sentido, resultando
num dos maiores elogios que Sartre poderia receber: Sua visão define tão perfeitamente
a sociedade moderna que nos vemos forçados a indagar se ele apenas criou uma
filosofia para os nossos tempos ou se os nossos tempos foram criados por sua filosofia.
Há algum exagero nisso, mas o elogio não é de todo despropositado, e foi
emitido por um insuspeito e prestigiado periódico norte-americano.
De
fato, a ambição internacionalista parece ter sido a marca registrada da carreira
de Sartre. Antes de qualquer outro, ele já nos anos 40 intuiu que a vida
moderna logo transformaria o mundo todo numa aldeia global, segundo a
definição logo depois formulada por Marshall McLuhan. Ao mesmo tempo em que
se dedica a questões regionais francesas (funda jornais clandestinos, ajuda a
criar um Comitê Nacional de Escritores, manifesta-se contra a guerra na Argélia
etc.), vai aos poucos estendendo sua atuação para fora da França. O resultado
dessa atuação em vários países e em várias frentes é notável. Ainda em 1948,
Sartre consegue a proeza de ser atacado ao mesmo tempo pela Igreja Católica (o
Santo Ofício coloca toda a sua obra no index) e pelo Partido Comunista
Soviético, sob a alegação de que As mãos sujas, uma de suas peças
teatrais, fazia propaganda hostil à urss.
A polarização típica desses tempos de Guerra Fria levava a radicalizar
esquerda ou direita mas ser simultaneamente amado e odiado pelos dois blocos
não era para qualquer um. Sem deixar de ser enraizadamente francês, mais do
que francês, parisiense; mais do que parisiense, um habitante de Montparnasse,
Sartre é cada vez mais um cidadão do mundo. Suas peças são traduzidas e
encenadas em várias partes da Europa, nos Estados Unidos, na América Latina, e
ele continua a ser um crítico implacável tanto da direita quanto da esquerda.
Suas
relações com o comunismo foram sempre atribuladas. Em 1948, participou da fundação
de um novo partido político, o rdr
(Ressemblement Démocratique Révolutionnaire), que pretendia reunir as
esquerdas socialistas e neutralistas, não-soviéticas. Simone de Beauvoir, em
um de seus livros de memórias, explica que tratava-se de agrupar todas as forças
socialistas não aderidas ao comunismo e de edificar com elas uma Europa
independente dos dois blocos. Mas já no ano seguinte Sartre entra em atrito
principalmente com David Rousset, trotskista, e demite-se do partido. Em 1952,
no entanto, começa a aproximar-se do Partido Comunista Francês e em 1954 faz a
primeira de uma série de viagens à Rússia. No mesmo ano é nomeado vice-presidente
da associação França-urss e os
comunistas em redor do mundo exultam, certos de que finalmente ele teria aderido
a Moscou. Mas em 1956 Sartre é dos primeiros a condenar a intervenção soviética
na Hungria e em seguida rompe publicamente com o Partido. Tais oscilações, que
ele justifica como preservação de sua independência, provocam uma série de
desentendimentos com antigos companheiros, como Raymond Aron, Merleau-Ponti,
Albert Camus ou André Malraux. Este último, em 1959, chega a fazer uma grave
insinuação: Eu defrontei-me com a Gestapo. Sartre não. Durante esse período
[ocupação nazista, entre 1942 e 1944] ele fazia representar as suas peças em
Paris, com o aval da censura alemã.
O
saldo dessa fase de namoro com o pc
soviético foi sua adesão ao marxismo, que ele vinha mantendo à distância, desde
os tempos de juventude. Tendo publicado em 1957, numa revista polonesa, um
artigo sob o título Existencialismo e marxismo, Sartre decide avançar na
questão, dedicando os anos seguintes à redação de seu último trabalho
filosófico de fôlego, Crítica da razão dialética (1960), uma tentativa
de conciliar a filosofia existencial à ideologia marxista. Apesar das idas e
vindas, suas posições tendem cada vez mais a se desenhar, a médio e longo
prazo, como pró-soviéticas. Seu prestígio internacional chega ao apogeu em
1964, quando a Academia Sueca lhe atribui o Prêmio Nobel. O que poderia ter
sido a consagração definitiva, transforma-se em escândalo. Sartre volta a
surpreender e recusa-se a receber o prêmio, alegando que isso lhe tiraria a
liberdade e a independência, interferindo em sua responsabilidade perante os
leitores. Em termos de promoção (involuntária?), foi um tiro certeiro: nenhum
escritor agraciado com o Nobel teve tanto espaço na imprensa quanto esse
francês excêntrico, que ganhou e não quis receber.
A
partir daí, ao mesmo tempo em que o prestígio começa a declinar, suas atitudes
de rebeldia passam a ser mais insistentes: para protestar contra a Guerra do
Vietnã, recusa um convite da Cornell University para fazer uma série de
conferências nos Estados Unidos; em 1966, atendendo a uma solicitação de
Bertrand Russell, integra um tribunal internacional incumbido de julgar os
crimes de guerra norte-americanos; em maio de 1968, quando da revolta
estudantil, em Paris, afirma, em entrevista à Rádio Luxemburgo: A única
relação que os estudantes podem ter com essa universidade é destruí-la;
criticado, em razão disso, pelo Partido Comunista, ele aproveita para condenar,
com veemência, a ocupação da Checoslováquia pelas tropas soviéticas. Suas posições
se radicalizam, suas aparições públicas ganham uma aura dramática, excessiva,
inversamente proporcional à repercussão que causam, quase sempre efêmera.
Nessa altura, Sartre parece ter perdido a flexibilidade e o brilho com que se
mantivera, até então, equidistante da polarização e do dogmatismo reinantes.
Em
1970 rompe definitivamente com a urss,
no ano seguinte corta relações com Fidel Castro. No aparente afã de manter-se
na vanguarda dos acontecimentos, adere à tendência maoísta, passando a
dirigir vários pequenos jornais radicais, como Tout!,Révolution, La cause du
peuple e outros. Sartre já se aproxima dos 70 anos e a saúde começa a dar
mostras de debilidade, em consequência da idade avançada, da atividade
febril de anos e anos seguidos e outros excessos: inúmeras viagens, hábitos
irregulares, noites e noites em claro, vários maços de Gauloises por dia e muitas
doses de uísque. Em 1973 ele está semicego, já não pode ler nem escrever.
Mais
adiante, um leve sinal de melhora e ele se reanima. Em 1977, enquanto o governo
francês recebe Leonid Brejnev, com todas as honras de Estado, Sartre, em
represália, une-se a vários intelectuais no Teatro Récamier, para recepcionar
um grupo de dissidentes soviéticos. Impossibilitado de ler e escrever,
continua a conceder entrevistas, como vinha fazendo desde 1973, e numa delas,
em 1979, já perto do fim, reconcilia-se com Raymond Aron. No dia 20 de março
de 1980 é hospitalizado, com um edema pulmonar e morre em seguida tendo
sobrevivido por cerca de dez anos ao fim do que a história contemporânea já se
habituou a designar A Era Sartre. Mas voltemos ao ponto de partida.
5
Tendo
nascido no dia 21 de junho de 1905, em Paris, Sartre praticamente não conheceu
o pai, falecido no ano seguinte. Passou a infância na Alsácia, sob as ordens do
avô materno, Charles Schweitzer, um austero professor de línguas, de formação
protestante, adepto da disciplina e da severidade de costumes. Foi o avô quem
incutiu nele, desde cedo, o hábito da leitura. Nessa fase, é estreito seu relacionamento
com a jovem mãe, Anne-Marie, já que o velho Schweitzer os tratava como duas
crianças. Sartre considerou uma traição o segundo casamento da mãe, em
1917.
Nessa
data ele interrompe os estudos no liceu Henri iv
e vai viver em La Rochelle,
onde o padrasto era diretor dos estaleiros navais. O escritor descreve esse
período como os três ou quatro piores anos de [sua] vida. Em 1920, está de
volta ao liceu Henri iv, onde
reforça a amizade com Paul Nizan, que o acompanhará por anos e anos. Nessa
altura, já havia descoberto sua vocação literária. Lê e escreve
abundantemente, procurando imitar seus autores prediletos: Flaubert, Rabelais,
Voltaire, Gide, Dostoievski, Tolstoi e muitos outros. Dos tempos de École
Normale Supérieure (1924-1928), ele declara, em seu livro de memórias As palavras: Foi para mim, desde o
primeiro dia, o começo da independência, quatro anos de felicidade. Foi uma
fase de intensa atividade intelectual, que lhe permitiu firmar reputação como
jovem brilhante, individualista e anárquico. Terminado o curso, ele presta
os exames finais e, para surpresa geral, é reprovado, ficando em 50o lugar.
No ano seguinte, é apresentado a uma ex-colega, formada na mesma École Normale,
com quem não tinha tido antes nenhum contato: Simone de Beauvoir. Em julho,
ambos se submetem, Sartre pela segunda vez, aos exames finais. Ele passa em
primeiro lugar, ela em
segundo. Anos depois, Simone anotará em suas memórias:
Quando o deixei, em agosto, sabia que ele nunca mais sairia da minha vida.
Entre
1929 e 1930, Sartre serve ao exército, por dezoito meses, tendo Raymond Aron,
ex-colega de faculdade, como sargento instrutor. Terminado o serviço militar,
Aron parte para a Alemanha e Sartre é nomeado professor de filosofia no liceu
do Havre, enquanto Simone vai lecionar em Marselha. Em 1932, os
três amigos se reencontram no Bec de Gaz, em Paris, o ponto onde iniciamos
este relato: Husserl, a fenomenologia, falar das coisas como que a tocá-las
e, ainda assim, fazer filosofia...
A
cena o cálice de abricó, erguido no ar com maliciosa simplicidade, a refratar
a irisada luz cambiante de dois ou três candeeiros, no instante em que tudo
começou pode bem ser o desenho-emblema antecipado de uma era extinta.
Carlos Felipe Moisésé poeta (Noite nula, 2008), ficcionista (Histórias
mutiladas, 2010), crítico literário (Poesia &
utopia, 2007), tradutor (O poder do
mito, 1990) e autor de livros infanto-juvenis (Conversa com
Fernando Pessoa, 2007). É mestre e doutor em Letras Clássicas
pela USP, tendo lecionado teoria literária e literaturas de língua portuguesa
em várias universidades, como a PUC SP, a USP e a Universidade da Califórnia,
Berkeley, EUA. É o curador da mostra Fernando Pessoa: plural como o universo,
em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, SP, de agosto 2010 a janeiro 2011.
[1]
Capítulo do livro em
preparo Dialética da transgressão: ensaios de crítica, teoria
e história literária.
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 -
ano III - número 8 - teresina - piauí - janeiro fevereiro março de 2011]