A forma desfeita e refeita: anotações sobre a poética de Orides Fontela
Rodrigo Lobo Damasceno - UEFS
RESUMO: Este trabalho pretende analisar a obra de
Orides Fontela (1940-1988) e discernir suas afinidades com outros autores,
sejam eles brasileiros ou estrangeiros. Busca-se, além disso, identificar as
características temáticas e formais que, acreditamos, tornam a sua poética um
tema a ser debatido na crítica e na história da poesia brasileira contemporânea
RESUMEN: El objetivo de este trabajo es el análisis
de la obra de Orides Fontela (1940-1988) intentando apuntar sus afinidades con
otros autores, dentre brasileños y extranjeros. Hacemos, además, una búsqueda
por la identificación de las características temáticas y formales que, creemos,
hacen de su poética un asunto a ser debatido en los ámbitos de la crítica y de
la historia de la poesía brasileña contemporánea.
A
falta de análises e estudos mais extensos (e exaustivos) sobre a poética de
Orides Fontela termina por situar a sua obra num espaço crítico e receptivo
que, longe de ser um limbo (pois que seus livros estão reunidos e disponíveis
em uma edição recente muito bem cuidada e distribuída), também não é o de
assimilação e integração definitivas ao repertório da poesia brasileira. Deste
modo, se não possuímos uma leitura-modelo da poesia de Orides, nós, leitores e
críticos, lidamos com uma forma muito curiosa de análise, que é baseada
sobretudo em intuições e sugestões que, por falta de tempo ou interesse ou
espaço, não foram amplamente desenvolvidas, mas que já são o suficiente para
configurar o inevitável e agradável tom de diálogo ao considerá-la. Daí a
condição instigante, excitante e ímpar da obra de Orides na nossa história e
crítica literárias recentes.
Dentre os tantos e tão breves
artigos dedicados à poeta nascida em São João da Boa Vista, há que se destacar, pela
quantidade e qualidade das indicações, o texto preparado por Ricardo Domeneck e
publicado na versão eletrônica da revista Modo de Usar & Co. Encontra-se,
pelos seus parágrafos, a consideração da biografia, a indicação de filiações na
poesia brasileira e também estrangeira, os problemas e as soluções de ordem
formal, temática e estética e, enfim, o seu valor e o seu lugar na produção
poética das últimas décadas. De todos estes pontos, aqueles que me parecem de
maior interesse e que apresentam o maior potencial para o desenvolvimento da
consideração crítica de Orides são a sua relação com alguns outros poetas e
aquilo que Domeneck resume como “símbolo” que “se faz signo, num movimento de
mão dupla, em fluxo e refluxo, como se a linguagem poética, em sua capacidade
múltipla de concretude e abstração, passasse a ter marés”.
A ligação com Wallace Stevens,
sugerida no artigo citado, pode ser realmente elucidativa — se não pelas
semelhanças, ao menos pela percepção distinta que os dois poetas tiveram diante
da mesma conclusão a que chegaram. Sobre isso, faça-se a comparação entre os
famosos “Thirteen ways of looking at a blackbird”, do autor americano, e os “Sete
poemas do pássaro”, de Orides. De início, creio ser impossível deixar de notar
como fundamental, em ambos os poemas, a disposição por meio da divisão do poema
em pequenas partículas numeradas — procedimento que corrobora a estruturação de
cada estrofe como sentenças muito bem pensadas e aprumadas, seja formal ou
filosoficamente. Percebe-se um inegável tom de aforismo que, acredito, evoca de
imediato a cultura poética e filosófica oriental, afeita ao tema da natureza e
à forma breve e sem floreios. Na oitava forma de observar o pássaro, Wallace
Stevens (p. 13) nota que
I
know noble accents
And
lucid, inescapable rhythms;
But
I know, too,
That
the blackbird is involved
In what I know.
Conclusão
semelhante àquela tirada por Orides Fontela (p. 101) no quinto poema do
pássaro:
Este pássaro é reto;
arquiteta o real e é o real mesmo.
Esta
noção de interdependência, exaustivamente debatida enquanto tema e/ou essência
mesma da poesia, está disposta em outros trechos destes poemas, ambos sedentos
de unidade. Para Stevens (p. 12),
A
man and a woman
Are
one.
A
man and a woman and a blackbird
Are
one.
Para Orides (p. 101),
Na luz do vôo profundo
existiremos neste pássaro:
ele nos vive.
Nenhum
dos dois poetas, neste caso, está sendo exatamente inovador em tema ou forma,
ambos apropriando-se de um anseio milenar e de um método cujas referências são
por demais conhecidas — daí ser inútil qualquer acusação e repetição ou
não-originalidade, já que o desejo de unificação obviamente se estende até a
própria noção de tradição poética e sua apropriação. No caso específico da
poesia brasileira, é preciso lembrar que Orides retoma, assim, a preocupação
central da poética de Murilo Mendes.
A
mais óbvia e assumida ligação da poeta, no entanto, como se percebe através do
grande número de referências explícitas, é com Carlos Drummond de Andrade. É
dele que parece retirar suas lições no que se refere ao uso do coloquial e à
admiração e valorização do que se diria pequeno, insignificante e indigno de
poesia. No entanto, qualquer leitor que tenha ido além dos clichês atrelados a
Drummond, sabe que a sua poética não se enquadra e se encerra aí — e que “A
máquina do mundo” é só o exemplo mais conhecido e mais à mão para relativizar
essa visão popularesca do autor mineiro. Já no que diz respeito à escrita
Orides, é perceptível que o uso de um ritmo, de um pensamento e de um vocabulário
que procura mimetizar a comunicação cotidiana também é raro e, além disso, não
está locada junto ao que de melhor produziu a poeta (o que não significa, no
entanto, que na sua melhor produção ela se perca em lances etéreos e inefáveis,
longe disso, mas apenas que desnudar o poema de ornamentos e excessos, no seu
caso, não significava conduzi-lo a um patamar rasteiro de linguagem, mas ir
além dele: “Nudez/ até o osso/ até a impossível/ verdade”). Neste ponto, o
percurso de Orides é bastante próximo ao de Max Martins, poeta paraense que tem
nas homenagens e emulações do tom drummoniano
a faceta menos interessante de sua obra e na superação deste tom o grande
momento de sua poesia — superação igualmente desapegada de passadismos ou
motivações etéreas, bastando lembrar que Max Martins, vez ou outra, cantava também
“pelo eu dum osso”, como explicita no poema “Um corpo”.
A reverência de Orides a Drummond
rendeu um poema como “Para CDA” (p. 283), do livro Teia, de 1996, cuja primeira e breve estrofe, em verdade, mais se
assemelha ao Murilo Mendes que experimentava, errava e acertava em cheio na
suas Convergências (jávistas e revistas de perto por Orides
dez anos antes, na sessão “Lúdicos”, do livro Rosácea):
O boi é só. O boi é
só. O
boi.
A
sentença simples oferece, por meio da variedade sonora da letra “o”, uma circularidade
perfeita, muito embora a repetição com a quebra da linearidade dos versos, que
deve muito, sem dúvidas, às experiências de Gertrude Stein, trabalhe em sentido
exatamente oposto. Quando Domeneck notou que Orides escrevia como se estivesse
indecisa sobre o modo mais eficaz de destruir o mundo, se “por uma força
centrípeta ou centrífuga”, talvez não estivesse levando exatamente esse aspecto
em conta, mas permito-me ampliar a noção desta maneira — que comporta ainda o
exemplo do poema “Alvo” (p. 76), cuja primeira estrofe é
Miro e disparo:
o alvo
o al
o a
enquanto
que a última é
Miro e disparo:
o a
o al
o alvo
A
opção de Orides por percorrer e concluir os dois caminhos, aceitar a
possibilidade das duas vias para o acerto é uma das características
fundamentais dos seus versos e da idéia que funda a sua poesia, aberta ao que
de mais radical foi feito na modernidade brasileira e anglo-saxã (criação
recorrente de palavra-valise, rebaixamento da linguagem poética, decomposição
do idioma por culpa da desconfiança da sua eficácia enquanto signo — na esteira
de Gertrude Stein, e.e. cummings, Oswald de Andrade, etc.) e jamais desligada,
por outro lado, da idéia da palavra e da poesia enquanto formas superiores de
reconhecimento da realidade. Essa reunião, no entanto, não se deu de forma
pacífica e, ademais, há que se dizer que o centro e o alimento para seu verso,
que ora apresenta tensão evidente, ora simula relaxamento, é justamente a mútua
violência/beleza desse encontro e a disposição da poeta em captar o exato
instante em que ele se dá.
Tal qual Wallace Stevens, Orides
sabe que as coisas, ao passarem por sua “blue guitar”, já não podem ser, no
poema, como elas são de fato — porém, ao contrário do que parece acontecer com
o norte-americano, este não é o ponto definido e pacífico de onde parte e se
cria a sua composição, mas uma motivação de angústia que torna o poeta, aos
seus olhos e aos seus escritos, tanto um criador quanto um destruidor, alguém
que, ao escolher uma “coisa” como tema, termina por desnaturá-la. Para usar uma
palavra fundamental do vocabulário de Orides, o trabalho do poeta é fixar — e fixar é destruir.
Essa constatação, no entanto, não
impede a criação poética e, em muitos casos, torna-se ela mesma matéria e tema
da poesia — tantas vezes representada como um pássaro em repouso: “De que serve
o pássaro se/ desnaturado o possuímos?”, pergunta-se em “Elegia (I)” (p.134) —
que continua:
O que era vôo e eis
que é concreção letal e cor
paralisada, íris silente, nítido,
o que era infinito e eis
que é peso e forma, verbo fixado,
lúdico.
Trata-se,
no entanto, de um dano justificável, necessário: “Humanizar o cisne/ é
violentá-lo. Mas/ também quem nos dirá/ o arisco esplendor/ — a presença do
cisne?” (p. 153). Consciência plena de que “Não há piedade nos signos”, como
escreve em “Fala” (p. 31). Esta referida humanização, no entanto, é ela mesma
perseguida pela autora que, em sua poética, assume a corporeidade como tema e
forma (“Sou carne viva e/ sal. Posso morrer”, escreve num poema chamado “Teologia”
(p. 310)). Na exata antítese de “Elegia (I)”, lemos a poeta passar da
“abstração” para a mais pura “concretude”, no movimento de marés identificado
por Domeneck:
Mais vale um
pássaro
na mão pou
sado
que o vôo da
ave além
do sangue. (p.284)
E,
afinal, nem tudo é desvantagem nesse processo de destruição, que pode terminar
servindo como início de um trabalho lúdico
de reconstrução (p. 18):
Quebrar o brinquedo
é mais divertido
As peças são outros jogos:
construiremos outro segredo.
(...)
A
violência é perceptível em quase todos os cantos de sua obra. Ciente de que “A
mão destrói imagens/ descristaliza signos”, Orides assume o seu papel de
decompositora e espalha, por exemplo, inúmeras referências a flores ou pássaros
desfeitos. Em “Repouso” (p. 130), lê-se que
Basta o profundo ser
em que a rosa descansa.
Inúteis o perfume
e a cor: apenas signos
e uma presença oculta
inútil mesmo a forma
claro espelho da essência
inútil mesmo a rosa.
Do
mesmo modo que, no poema “Origem” (p. 251), vem escrito: “Nem flor nem folha
mas/ raiz/ absoluta. Amarga.// Nem ramos nem botões. Raiz/ íntegra. Sórdida.”
Neste
espaço e neste tempo finito da poesia, que não são o do pássaro livre na
natureza, existe, para Orides, a possibilidade de recriação, ainda que num
esquema delimitado pela forma artística — portanto, há que se arrancar desta
forma os métodos e os esquemas que melhor sirvam a uma recriação plena: daí o
ritmo ser essencial, daí a utilização de reiterações vocabulares e sintáticas,
daí o misticismo latente.
A
leitura seguida da obra completa de Orides revela uma poeta cujo repertório
vocabular é extremamente definido e sistematicamente reutilizado. É óbvio que
qualquer estudo quantitativo e estatístico, aplicado a qualquer poeta, termina
por identificar suas preferências e manias vocabulares, mas a repetição, no
caso específico de Orides, parece indicar sua necessidade de dotar a obra de
certa organicidade — conceito pouco ligado às suas preferências pelo ideário
estilístico de vanguarda, mas perfeitamente aplicável ao sabor arcaico que sua
poesia também possui e conserva. A repetição é ainda uma forma de conseguir e
de reter a atenção do leitor e de induzir ao transe. São inúmeros os poemas
compostos através de um mote ou refrão, repetidos, em todas as estrofes, com um
mínimo de alterações ou mesmo de forma idêntica: “Tudo será”, em “Fala”; “Ó
pássaro”, em “Pouso”; “Compor os pomos”, em “Composição”; “Sob o sol sob o
tempo”, no surpreendente e ilustrativo “Ciclo”, etc. Muitos leitores se
sentiriam tentados a observar tal processo em paralelo com a utilização da
repetição serial promovida por Gertrude Stein, sobretudo ao notar que “rosa” é
palavra essencial e repetida até a exaustão ao longo da obra de Orides — além de
ser o centro da mais famosa e banalizada sentença repetitiva e Stein (“Rose is
a rose is a rose is a rose”). Leia-se, a título de exemplo, “A rosa
(atualmente)” (p. 111): “A rosa reta/
não a rosa/ rosa// rosa de raiva/ não a rara/ rosa// rosa de plástico/
não a plástica/ rosa.” Embora exista, de fato, a presença constante da palavra
“rosa”, há que se perceber, de imediato, que o poema de Orides se cria também pela
negação, oposto do que faz Stein em “Sacred Emily”. Para além disso, como já
foi sugerido acima, as reiterações e repetições, na obra de Orides, parecem
mais ligadas ao seu anseio pela organicidade do que às suas ligações (muito
claras, é bem verdade) com as idiossincrasias estilísticas do modernismo.
Não
há equívoco algum em chamar atenção, por outro lado, para a disposição geralmente
breve dos seus versos e para a evidente preferência pela elipse, pela fragmentação
e pelos cortes abruptos. Todos esses procedimentos, no entanto, não parecem
comprometer a intenção da poeta de dar circularidade à obra: ao observar certos
aspectos da realidade (naturais e humanos), Orides desvenda a possibilidade do
fragmento estar também atrelado a outro tipo de unidade mais coesa. Os versos
de “Figuras” (p. 126) são definitivos:
A água fragmentada ascende
em brancura dinâmica
e no ápice de si constrói o arco
de que perenamente cai
regressando à unidade de seu ser.
Há,
neste caso, a consciência de que o fragmento é, em essência, uma forma e uma
condição efêmeras — forma e condição que servem perfeitamente à arte, como se
lê na segunda sessão do mesmo poema, intitulada “b) estátua”, na qual Orides
parece nos dar a melhor definição de sua arte poética:
Fluência detida do ser; forma
— apenas equilíbrio de ritmos.
Esta
concepção artística influencia, sobretudo, os metros e os ritmos encontrados em
sua poesia, que consegue equilibrar-se entre um fluxo musical, cuja leitura sugerida
ou exigida é veloz e fluida (leia-se o já citado “Repouso”) e uma justa
“fluência detida” (fixada, afinal),
exprimida aos saltos, em aparente desordem e com pouca conexão entre suas
partes.
Aquilo
que se depreende da obra e Orides, portanto, é que lidamos com uma poeta
dividida entre contemplar e apreender. Sua mistura de atração e repulsa pelo
verbo fixado parece tê-la conduzido a uma obra bifronte e definida pela dúvida
e pela ansiedade diante do seu trabalho. A própria Orides, por fim, encontrou e
nos revelou a figura mais próxima de si, aquela cujo drama é representação
ideal para a sua própria inquietação. Sob o título de "Penélope" (p.
170), lemos o seguinte poema:
O que faço des
faço
o que vivo des
vivo
o que amo des
amo
(meu “sim” traz o “não”
no seio).
Penélope,
em seu afazer sempre incompleto (pois que o seu término acarretaria a morte
simbólica daquele que ela amava), é a mulher com a qual se identifica e através
da qual cria estes versos, que explicitam sua posição ambígua e sempre alerta e
desconfiada diante da arte poética. Talvez não seja um erro exigir a mesma
atenção por parte de quem a lê: sua mania de desfazer e refazer as formas poéticas
sob as quais compõe parece também nos sugerir que desfaçamos e refaçamos a
forma com a qual costumamos ler poesia.