A gulodice do texto, as delícias do intertexto: uma leitura de Clarice Lispector
Rodrigo da Costa Araújo - FAFIMA
RESUMO:
A
literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector (1925-1977) é repleta de
intratextualidades, paródias, paráfrases e metalinguagem, e, por seu caráter
inovador nos anos 60, estabeleceu uma nova linguagem no gênero destinado às
crianças. Questionando essas estratégicas, este estudo apresenta uma reflexão
ressaltando a singularidade de Clarice Lispector que desconstroi a relação
hegemônica adulto-criança e privilegia o mundo lúdico das crianças e dos bichos
ao inverter os pressupostos pedagógico-moralizantes que surgem neste gênero
literário. Para contemplar esse olhar utilizaremos o livro A vida íntima de Laura que será lido como palimpsesto da própria
escritura, - ora como fragmentos justapostos e sobrepostos, ora como fragmentos
colados e reescritos - espécie de rasura escritural ou citação literária
retomada em sua própria poética ou em outro escritor - como no livro As Frangas, de Caio Fernando Abreu
(1948-1996).
PALAVRAS-CHAVE: literatura infantil - Clarice
Lispector - A vida íntima de Laura
ABSTRACT:
Thechildren's literature by Clarice Lispector (1925-1977)
is replete with intratextual, parodies, paraphrases and metalanguage, and by
its innovative character in the 60s, established a new language in the genre
aimed at children. Questioning these strategies, this study presents a
discussion emphasizing the uniqueness of Clarice Lispector that deconstructs
the hegemonic adult-child relationship and highlights the playful world of
children and animals to reverse the pedagogical and moralistic assumptions that
arise in this literary genre. To contemplate this view will use the book The
inner life of Laura that will be read as a palimpsest of the writing itself -
sometimes as fragments juxtaposed and overlapping, sometimes as fragments
pasted and rewritten - kind of erasure scriptural or literary quotation taken
up in his own poetic or another writer - as in the book The pullets, by Caio Fernando
Abreu (1948-1996).
KEY WORDS: children's literature - Clarice Lispector - The inner
life of Laura
I. PRIMEIRÍSSIMAS ENTRADAS
“[...] Escrever é o
modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra.
Quando essa não-palavra - a entrelinha- morde a isca, alguma coisa se escreveu.
Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra
fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O
que salva então é escrever distraidamente”.
[Clarice Lispector, Água viva. p.21]
A
epígrafe acima que a narradora de Água
viva transfere ao interlocutor a quem escreve, em espécie de escritura-isca
ou entrelinhas, certamente pode ser estendida a toda a obra de Clarice
Lispector. O leitor torna-se esse pescador de palavras e segue a trajetória do
anzol, deslizando em superfícies líquidas, ou vivendo à deriva por onde esse
anzol alcançar, nos limites de uma escritura que procura o sentido mesmo de
escrever ou as errâncias da trajetória desse processo instigante.
Clarice Lispector
(1925-1977) publicou uma série de obras, dedicando-se essencialmente à
narrativa. Sua produção tornou-se mais intensa nas décadas de 1960 e 1970, após
seu retorno definitivo ao Brasil. Suas principais obras são A maçã no escuro (1961), A paixão segundo G.H. (1964), Água viva (1973), Via crucis do corpo (1974) e A
Hora da estrela (1977). A autora investiu também na literatura
infanto-juvenil, produzindo quatro narrativas: O mistério do coelho pensante (1967), Quase de verdade (1967), A
mulher que matou os peixes (1968) e A
vida íntima de Laura (1974). Essas obras, que contribuíram para mudanças
significativas nos paradigmas da literatura infanto-juvenil, confirmam o mérito
literário da autora, para quem o ato de escrever era uma necessidade vital.
Desses
quatro livros, apenas A vida íntima de
Laura (1983) será lido, para além do conceito Literatura infantil, como um
instigante trabalho com a escritura. Através do lúdico e do diálogo,
descobrem-se, semiologicamente, através dessa trama, elementos ou recursos que
exploram o real e o fantástico, mas, que, acima de tudo, instiga o interesse e
o questionamento, através do dramatismo e da sua técnica no trabalho com o
“recorte-colagem” e com a linguagem. A trajetória dessa leitura persegue nas
entrelinhas da escritura, outros textos da autora, justapostos ou sobrepostos
muitas vezes colados e reescritos,- como fez Caio Fernando Abreu -, mas nunca
totalmente apagados
II. AS CONSTANTES DE UMA COLAGEM
Escrever [...] é
sempre reescrever, não difere de citar. A citação, graças à confusão metonímica
a que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou
escrever é realizar um ato de citação. A citação representa a prática primeira
do texto, o fundamento da leitura e da escrita: citar é repetir o gesto arcaico
do recortar-colar, a experiência original do papel, antes que ele seja a
superfície de inscrição da letra, o suporte do texto manuscrito ou impresso,
uma forma da significação e da comunicação lingüística.
[Compagnon, 2007,
p.41]
Em
Clarice Lispector,
como na epígrafe acima, tudo se entretece e se interliga. A identificação
destas citações, enxertos e alusões intertextuais mostram-se valorizadas a
partir dos diferentes discursos adotados pela escritora, seja na obra adulta ou
infanto-juvenil.É nesse sentido que
utilizaremos, nesse ensaio, como metáfora desse processo, a rubrica “as
constantes de uma colagem”. Esse jogo de citações em
Clarice, para complementar ou enriquecer sua escritura, sugere um entendimento
do texto não mais como produto, significado fechado em si mesmo, mas como
produtividade como demonstrou Kristeva, uma relação corpo-linguagens,
palavra-corpo, corpo-imagem em permanente expansão.
A
vida íntima de Laura
(1983) retrata o cotidiano de uma galinha burra, simpática e comum. Ao lado de características que se repetem na sua
ficção infanto-juvenil, como: a sinceridade no tratamento com a criança, o
questionamento da posição do adulto em relação à criança, as reflexões do
próprio gênero, a metalinguagem, o respeito à criança enquanto criança, o
equilíbrio entre realidade e fantasia etc., o que predomina nessa obra é o
questionamento do papel da mulher, do cotidiano feminino enquanto mãe, esposa,
dona de casa e do próprio absurdo desses afazeres.
Misturados - cotidiano,
mulher, mãe - surgem, ainda, a dialética da vida e da morte para complementar o
mesmo enredo que se repete no conto Uma
Galinha (1991, pp.43-46) do livro Laços
de Família, da mesma autora. O nome da personagem, Laura, também nos remete
a um dos mais famosos contos de Clarice Lispector, A imitação da rosa (1991, pp.47-69), em que a protagonista, diante
da visão da beleza e da perfeição das rosas, questiona todo o seu mundo feminino e o seu ser. No conto infantil referido, e
direcionado ao público infantil há, ainda, a sugestão do ser que viria de outro
planeta e se espantaria com o universo comum dos homens, o que acontece,
realmente, nessa narrativa. Portanto, é através da intratextualidade ou paródia
que se percebe o jogo de idas e vindas entre os textos claricianos, em que um
completa o outro.
Outra
característica que se repete, em todas as obras infanto-juvenis de Clarice
Lispector, é o diálogo entre narrador-adulto/narratário-criança (“Dou-lhe um
beijo na testa se você adivinhar”) e a preocupação metalinguística através da
explicação do próprio código. (“Vou logo explicando o que quer dizer “vida
íntima”.). Uma segunda é a preocupação em falar do interior do personagem, de
suas sensações e do seu viés introspectivo dominante em todas as obras da
escritora, inclusive as infanto-juvenis.
A
história da galinha sugere, semiologicamente, ser a história estereotipada e
irônica, do universo feminino. Laura é casada com Luís, um galo que também
prototipiza o clichê masculino: brigão e, às vezes, vaidoso (de ser casado com
Laura, de cantar alto, rouco e estridente, de ser pai). Laura é burra, mas tem
seus pensamentos e sentimentos, o que a faz julgar não ser burra, tem medo das
pessoas e não aceita carinho delas, é útil porque põe muitos ovos. É modesta e
apressadinha. Quase não tem sentimentos. Possui a mania de comer qualquer
coisa. Ser mãe é sua grande atividade e prazer: preparar-se cuidadosamente para
a maternidade, aguarda a chegada do filho, recebe a visita das amigas e aceita
dieta especial “pós-parto”, vinda de sua dona. Cuida do filho recém-nascido,
alimentando-o, sentindo-se uma rainha, por ser mãe, um universo feminino e
tranquilo pautado sutilmente pela ironia da narradora.
Assim,
a protagonista-mãe representa seu cotidiano e toda a sua vida, apesar de
algumas anormalidades que lhe acontece, como por exemplo, a tentativa de roubo,
o seu empréstimo para o vizinho, a sua quase morte pela cozinheira (que pega
sua prima Zeferina) e a visita do Xext, habitante de Júpiter, fatos que não modificam
a mesmice de seu cotidiano e de sua rotina.
A
última frase do texto, “Laura é bem vivinha”, construída com o verbo ser,
sugere, do ponto de vista semântico, a ideia de toda uma existência e não a uma
transitoridade, enquanto o adjetivo “viva”, no diminutivo, conduz o leitor à
ideia de esperteza, oposição à morte, mas, ao mesmo tempo, à ideia de “não
muito intensa”. Nesse sentido, a vida de Laura, a sua “felicidade”, consiste em
não questionar nada, em sua burrice e em sua ausência de sentimentos. Nesse
olhar a narrativa questiona a maioria das mulheres, mães, esposas, etc.,
enquanto úteis ao sistema capitalista e a si mesmas quando não questionam sua
própria vida e o mundo à sua volta. Semelhante a Ana, protagonista do conto Amor (1991, pp. 29-41), esta nos parece ser a leitura mais
provável desta obra de Clarice Lispector: o questionamento da alienação do “ser
feminino”.
Embora
seja, quase sempre, narrada por um adulto, a ficção clariciana para crianças
nunca deixa de fazer veladas ou explícitas críticas ao mundo e às relações
sociais. A visão capitalista da exploração de um ser pelo outro, enquanto ele
pode ser útil, produzindo, é bem nítida nas seguintes passagens: “Mas ninguém
tem intenção de matá-la porque ela é a galinha que obra mais ovos em todo o
galinheiro e mesmo nos das vizinhas...” ou “Dona Luisa a emprestou para o
quintal vizinho. É que ela sabia botar muito ovo e pediam que a emprestassem
por uns tempos”. E ainda: “A cozinha para Dona Luísa apontando Laura: - Essa
galinha já não está botando muito ovo e está ficando velha. Antes que pegue
alguma doença ou morra de velhice a gente bem podia fazer ela ao molho pardo”.
Outra
crítica sugerida ao mundo adulto é a questão da discriminação racial. “As
outras são muito parecidas com ela: também meio ruiva e meio marrom. Só uma
galinha é diferente delas: uma carijó toda de enfeites preto e branco. Mas elas
não desprezam a carijó por ser de outra raça. Elas até parecem saber que para
Deus não existem essas bobagens de raça melhor ou pior”. Também ela se refere à
convenção social dos adultos, que se contradizem com suas mentiras e
duplicidades de comportamento: É engraçado gostar de galinha viva, mas ao mesmo
tempo também gostar de comer galinha ao molho pardo. É que pessoas são uma
gente meio esquisitona”. Ou: “Então ela meteu o bico na lama, se lambuzou toda
e se despenteou. [...]: ela sabia que os outros só a reconheciam mesmo porque
ela era mais limpa e a mais penteada do galinheiro”. E: “ O filho e a filha de
Dona Luísa, Lucinha e Carlinhos, comerem, embora com pena, Zeferina com arroz
branco e solto e regaram tudo com molho pardo”. E ainda: “ Xext perguntou a
Laura, os humanos são muito complicados por dentro. Eles até se sentem
obrigados a mentir, imagine só”.
Frequentemente,
a visão da narradora se interrompe na da personagem, como na última citação
feita, e, com isso, ela parece não ser tão burra assim; mas a ironia maior da
narradora está em deslocar a proteção para os seres terrestres aos seres de
outro planeta, Júpiter, por exemplo, ou a Deus, visto que os próprios
terrestres se comem mutuamente, apesar de se gostarem. Comem-se em vida,
explorando sua capacidade de produção e, depois de mortos, literalmente. Aquele
que escapar será por proteção divina, ou de seres espaciais, como Laura, nos
diria, ironicamente, a autora.
III. PASTICHES, BICHOS, TRANSFORMAÇÕES, HIPOTEXTO
Funcionando como índice temático ou mesmo hipotexto, na
terminologia de Gerard Genette, As
Frangas (2002), de Caio Fernando Abreu é confessadamente uma homenagem e pastiche
da obra de Clarice Lispector. Essa leitura da obra da autora parece ser e
demonstrar que a narração sobre a mesma temática é um processo significante que
entende a escritura como citação. O crítico francês diz que a citação é a
indicação explícita de um texto. O texto citado é tomado como hipotexto; o
texto absorvente como hipertexto. A citação é um tipo de intertextualidade
explícita, ao contrário da alusão, que é menos clara e exige mais atenção do
leitor.
Sem esconder a possibilidade de despiste, o autor
epigráfico, já no início do livro esclarece: “Para Clarice Lispector, que
também gostava delas, ficar quietinha do lado de lá”. Num primeiro momento,
outra epígrafe do livro cita A vida
íntima de Laura reafirma a ideia anterior: “Vai sempre existir uma galinha
como Laura e sempre vai haver uma criança como você. Não é ótimo? Assim a gente
não se sente só”. (ABREU, 2002, p.9). Começando assim, e, confessadamente,
assumindo um diálogo com o leitor infantil, Caio Fernando Abreu constrói,
através do narrador, as mesmas características linguísticas da obra
infanto-juvenil clariceana.
A reverberação, colhida no código circunstancial do livro
de Clarice, funciona no título (As
Frangas) que desenvolve um jogo ora irônico, ora retomando inúmeras
referências da obra original para reforçar o discurso citacional e apaixonado
pela autora. Paixão pela escritura e pelos bichos também é, como Clarice, uma
marca forte do livro de Caio: “ Lendo este livro você vai descobrir que as
galinhas também têm uma vida íntima” (ABREU, 2002, p.9). Experimentando
variações desse gênero para criança, Caio Fernando Abreu, novamente imbuído de
intenções intertextuais, ressalta os motivos que o levaram a adotar o termo
“frangas” em detrimento de “galinhas”: “Mas antes de começar tenho que explicar
que gosto muito mais de chamar galinha de franga do que de galinha. Por quê?
Olha, pra dizer a verdade, nem sei direito. Quando olho para uma galinha, acho
ela muito mais com cara de franga. Acho mais engraçado” (ABREU, 2002, p.10).
Na verdade, a substituição de um termo por outro não é
tão inocente quanto apresenta ser nesse fragmento acima. A metonímia, nesse
caso, sugere, semanticamente, marcas de um narrador urbano e as saudades da
vida no interior, imerso num quintal com diversas descobertas – das galinhas e
cachorros, das frutas e legumes frescos colhidos sem agrotóxico. Tudo isso, o
narrador recupera para reforçar o espaço mental do mundo infantil, como também
certa necessidade de escapismo e fabulação (por isso a força reincidente do
pastiche).
A cidade,
recuperada com ajuda do paratexto-título[1] do livro, opõe-se ao contado com as lembranças do mundo rural como maneira de
resgatar alguma forma de encantamento, enfatizando também em galinhas e
insufladas pela imaginação, passaram a ser verdadeiras. Além disso, o termo
“franga” é também uma “estratégia da forma"[2] para reforçar sutilmente o olhar irônico do narrador: a substituição dos
vocábulos instaura o tom homoerótico no texto dedicado às crianças porque se
oculta na construção do imaginário escapista e repleto de divagação do tema.
“Vocês já repararam como estou dispersivo? Dispersão é quando a gente começa a
contar uma coisa, aí interrompe e começa a contar outra, no meio daquela,
depois começa a contar de novo e a primeira coisa, e interrompe também para
contar uma terceira. Por aí vai. Prometo que daqui a pouco vou me controlar.
Mas por enquanto estou bem dispersivo mesmo” (ABREU, 2002, p.16).
Disfarçadas em
sutilezas e em estilo dialogante, que estabelece de imediato uma relação quase
amorosa com o leitor, o narrador vai mesclando lembranças da infância e da
adolescência, misturadas à sua amizade por frangas que “moravam” em cima da
geladeira, sobre o livro de Clarice Lispector, A vida íntima de Laura. Em tom confessional, entre interrupções e
reflexões metalinguísticas propõe-se ao leitor infantil indagações sobre a
aprendizagem da vida. Segundo Nelly Novaes Coelho (1995, p.173-174) essas
reflexões são: a essencialidade do amor, o valor da palavra literária como
criadora do real, o contar estórias como elo de aproximação fraternal entre os
seres e a necessidade de aceitarmos as diferenças que distinguem cada ser, pois
cada qual tem a sua razão de existir.
Simulacro
crítico da escritura clariceana, As
Frangas, do escritor gaúcho não poderia ser a cópia da cópia como pensam
alguns leitores. O simulacro, como apontou Leila Perrone-Móises (1993, p.19)
“produz a diferença como semelhança simulada”. Essa força produtiva, inventiva
e descentralizadora do simulacro, segundo a crítica, confere-lhe uma orientação
futuritiva que se opõe à tendência da cópia. Segundo esse raciocínio é possível
entender a intertextualidade correlacionada com o ato mesmo da escritura, pois
um texto, na concepção barthesiana é “um texto é feito de escrituras múltiplas,
oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em
paródia, em contestação” (BARTHES, 1988, p. 70).
O mesmo olhar pode ser confirmado com as palavras de
Laurent Jenny (1979, pp. 5-49) que considera a intertextualidade como algo
fundamental para a apresentação e compreensão da obra literária, cujo sentido e
estrutura só se apreende se relacionada com os seus arquetípicos face aos
quais, a obra entra sempre em relação de realização, transformação ou
transgressão. Para o estudioso, o olhar “intertextual”, é sempre um olhar
crítico que apreende, transforma e reescreve.
Considerando essa definição, pode-se afirmar que ao mesmo
tempo em que a obra em questão se encaixa na narrativa clariceana, em muito
dela se afasta por concentrar muito da sua característica própria, tais como: o
olhar enviesado e homoerótico, os recursos do simulacro na composição da
narrativa, o discurso do diferente e a ironia corrosiva e pós-moderna.
O jogo do duplo, diferentemente da protagonista do livro
de Clarice, instaura-se na narrativa de Caio Fernando Abreu como forma de
transgressão através das oito personagens que compõem a história: Ulla, Gabi,
as três irmãs (Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth), Otília, Juçara e Blondie.
De certa forma, elas através de características próprias e na sutileza do
narrador pós-moderno representam, alegoricamente marcas do discurso
homoerótico. Inscrevem-se no processo ficcional de Caio, embebidas no discurso
afetação/diferenças, na estética camp da
atuação kitsch e da imitação paródica
do mundo sentimental. E segundo BRAGA (2006) assumem o tom pedagógico para a
homoafetividade.
Em tom de ironia, tais exercícios provocam o leitor para
interpretar e avaliar criticamente o discurso construído. Por esse ângulo,
passa a funcionar como um dos principais recursos irônicos da linguagem
pós-moderna: “[...] vezequando, uma coisa só começa mesmo a existir quando você
também começa a prestar atenção na existência dela” (ABREU, 2002, p. 23).
Assim, utilizando e negando o simulacro, As Frangas, transgressoramente, busca a
reprodução do discurso sensível do objeto recortado para, através dos discursos
das diferentes galinhas, construir um outro. O narrador, nessas divagações,
mescla assuntos de adultos e assuntos de criança quando fala: “Na vida, as
coisas mais doces custam muito a amadurecer. Mas isso é pensamento de gente
grande, deixa pra lá” (ABREU, 2002, p. 16).
A intertextualidade inventiva, paródica, irônica e
irreverente, traduzida em colagens faz dessa obra infanto-juvenil de Caio
Fernando Abreu um princípio de reflexão estética, ao mesmo tempo em que aponta
para a impossibilidade da ficção infantil contemporânea viver de um passado
estético. É uma das formas mais eficientes de se questionar as exigências
políticas de representação na arte, como afirma Linda Hutcheon.
DE
ERRÂNCIAS, DE PEQUENOS FRAGMENTOS, ALGUMAS (IN)CONCLUSÕES
A literatura infantil de Clarice Lispector, semelhante a sua
escritura para adulto, aliás sempre retomada, não se resume simplesmente em
reescrever ou citar um fragmento tornando-o outro, porque diz muito mais:
revela o compromisso com o fazer literário, seu labor com o texto enquanto
criação, uma desconstrução de visões moralistas ou hipócritas no discurso do
adulto-narrador. É como nos diz Barthes: “A escritura é uma criação; e, nessa
medida, é também uma prática de procriação” (1981, p.398).
A metalinguagem, nesse olhar espiralado de textos, é a reflexão, a
retomada da própria linguagem, também presente nessas narrativas, um certo
acabamento da escrita, e aqui, por extensão deste ensaio, diríamos como quer
Compagnon, que ela também é o desenlace de outros textos, começo de uma outra
escrita e seu fantasma.
Os bichos nesse mosaico, disfarçados de textos, ilustram o jogo do
discurso que ora revela a sensibilidade humana, ora “a simbologia do ser”, como
afirmou Benedito Nunes. Entre peixes, galinhas, coelhos e outros bichos mais,
circula um mundo girante de alegorias misturando informações lógicas e ilógicas
para compor um retrato poético da escritura, um mundo movente de baratas que
questiona a significância humana e suas relações sociais.
Essa escritura em
palimpsesto, que retoma as narrativas e enredos da literatura adulta, os bichos
e as mesmas indagações formam esse outro olhar para uma literatura do público
infantil. Esse trabalho de superpor ou reescrever narrativas vai resultar numa
obra que se constrói por várias mininarrativas que, muitas vezes, é o que
redunda na desarticulação necessária não só à escritura, mas sobretudo a
qualquer leitura.
Nessa reelaboração - seja do discurso clássico ou da própria obra
dela,- esse constante “trabalho da citação” leva a escritura à exaustão, no
sentido de que esta cita-se a si mesma em sua construção.A autora, por assim
dizer, como mais uma citação de seu mundo ficcional, uma vez que cita ela
mesma, acaba re-citando duas vezes o mesmo fragmento na escritura dos livros, o
que dá aquele tom do já-dito, do já-citado dentro do mesmo texto,
exaustivamente.
Nesse jogo de retomadas e intertextos o escritor transforma a linguagem,
joga com as palavras e, movido pelo prazer, brinca constantemente com a forma.
Este é fruto de uma corrente de prazer profundo que se quer dito e a língua não
tem como dizê-lo. Este prazer sem freio rompe as fronteiras do léxico e deseja
a palavra ainda não dita, não pronunciada, ainda não nascida.
A leitura-escritura, em “mise-en-abyme"[3],
técnica utilizada tanto pelo pintor quanto pelo escritor, desdobra-se
como recurso e efeitos da percepção. “A imaginação do leitor é líquida, tudo
muda; a imagem figurada pela tipografia torna-se benéfica, exaltante; é a do
banho lubrificante, do jato liberador, do orgasmo utopicamente infinito”
(BARTHES, 1982, p.60). Demiurgos, Barthes e Clarice Lispector fazem da
escritura um trabalho alquímico, que consiste em retorcer, deformar, dar novo
sentido às palavras, de fazê-las dizer o sensível por linhas tortas e sempre
nas entrelinhas. Ambos assumem o princípio do prazer, em que se instaura e se
mascara a escritura como “kama sutra da linguagem” (BARTHES, 1977, p.11).
Metaforizam na arte questões que relacionam o homem, o real e a representação
através dos textos. Confirmam que “escrever é abalar o mundo”.[4]
Em Clarice o texto mais íntimo, semelhante a “poiésis”
barthesiana, é a desenfreada busca prazerosa pela escritura. Um exercício
escritural que mora mesmo no ato de dizer das coisas, arraigado na enunciação.
Uma poesia em pequeninos “flashes” revelativos, momentos mágicos e luminosos de
sua textualidade. “A escritura questiona o mundo, nunca oferece respostas;
libera a significação, mas não fixa sentidos”. (PERRONE-MOISÉS, 1980, p.54).
Ela é a “bruma na memória, e esta, memória imperfeita que é também amnésia
imperfeita” (ROBBE-GRILLET, 1995, p21).
Assim, nesses exercícios de vertigem, os textos clariceanos se
reproduzem num espaço labiríntico, pois não se deixam encerrar em categorias e
modelos. “Cada palavra poética constitui assim um objeto inesperado, uma caixa
de Pandora de onde escapam todas as virtualidades da linguagem particular, uma
espécie de gulodice sagrada”.[5]
REFERÊNCIAS
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______. Sollers Escritor. Trad. Ligia Maria P.
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______. Le degré zéro de l’éscriture suivi de
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______.
A Aventura Semiológica. Trad. Maria
de S. Cruz. Lisboa. Edições 70, 1987.
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COPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte:
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GENETTE, Gerard. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Seuil.1982.
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______. A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
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WALDMAN, Berta. Clarice Lispector: a paixão segundo C.L.
São Paulo: Escuta, 1992.
[1] O termo
paratextualidade foi inicialmente usado por Genette (1982) para designar o que
depois ele chamou de transtextualidade. Assim a paratextualidade passou a ser
considerada como o segundo tipo de relação transtextual, aquela que o texto
propriamente dito mantém com o seu paratexto: título, subtítulo, prefácios,
advertências, prólogos, etc.
[2] Laurent Jenny (1979),
em seu artigo “A estratégia da forma”, diz sobre a intertextualidade: O que
caracteriza a intertextualidade é introduzir a um novo modo de leitura que faz
estalar a linearidade do texto. Cada referência intertextual é o lugar duma
alternativa: ou prosseguir a leitura, vendo apenas no texto um fragmento como
qualquer outro, que faz parte integrante da sintagmática do texto – ou então
voltar ao texto-origem, procedendo a uma espécie de anamnese intelectual em que
a referência intertextual aparece como um elemento paradigmático “deslocado” e
originário duma sintagmática esquecida. Na realidade, a alternativa apenas se
apresenta aos olhos do analista. É em simultâneo que estes dois processos
operam na leitura - e na palavra - intertextual, semeando o texto de bifurcações
que lhe abram aos poucos, o espaço semântico. Sejam quais forem os textos
assimilados, o estatuto do discurso intertextual é assimcomparável ao duma super-palavra, na medida
em que os constituintes deste discurso já não são palavras, mas sim coisas já
ditas, já organizadas, fragmentos textuais. A intertextualidade fala uma língua
cujo vocabulário é a soma dos textos existentes. Opera-se, portanto, uma
espécie de separação ao nível da palavra, uma promoção a discurso com um poder
infinitamente superior ao do discurso monológico corrente. (1979, p. 21 e
22)
[3] A mise en abyme consiste num processo de reflexividade
literária, de duplicação especular. Tal auto-representação pode ser total
ou parcial, mas também pode ser clara ou simbólica, indireta. Na sua
modalidade mais simples, mantém-se a nível do enunciado: uma narrativa
vê-se sinteticamente representada num determinado ponto do seu curso.
Numa modalidade mais complexa, o nível de enunciação seria projetado no
interior dessa representação: a instância enunciadora configura-se,
então, no texto em pleno ato enunciatório. Mais complexa ainda é a
modalidade que abrange ambos os níveis, o do enunciado e o da enunciação,
fenômeno que evoca no texto, quer as suas estruturas, quer a instância narrativa
em processo. A mise en abyme favorece, assim, um fenômeno de encaixe na
sintaxe narrativa, ou seja, de inscrição de uma micro-narrativa noutra
englobante, a qual, normalmente, arrasta consigo o confronto entre níveis
narrativos. Em qualquer das suas modalidades, a mise en abyme denuncia uma
dimensão reflexiva do discurso, uma consciência estética ativa ponderando a
ficção, em geral, ou um aspecto dela, em particular, e evidenciando-a através
de uma redundância textual que reforça a coerência e, com ela, a
previsibilidade ficcionais. (ver DALLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire. Essai sur mise en abyme. Paris: Seiul, 1977).
[4] Barthes. In: Sobre
Racine. Trad. Antonio C. Viana. Porto Alegre. L&PM, 1987
[5] Barthes. In: Le
degré zéro de l’éscriture suivi de Nouveaux essais critiques. Paris: Seiul, 1972. p. 38
__________ Rodrigo da Costa Araújo é professor de Literatura Infantil e Teoria da Literatura na FAFIMA - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé, Mestre em Ciência da Arte [UFF] e Doutorando em Literatura Comparada [UFF]. Ex Coordenador Pedagógico do Curso de Letras da FAFIMA, pesquisador do Grupo Estéticas de Fim de Século, da Linha de Pesquisa em Estudos Semiológicos: Leitura, Texto e Transdisciplinaridade da UFRJ e do Grupo Literatura e outras Artes da UFF/Cnpq. E-mail: rodricoara@uol.com.br
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano III - número 8 - teresina - piauí - janeiro fevereiro março de 2011]