Resumo: Neste texto procurei estabelecer algumas ligações teóricas com a temática do menor: os detritos em Walter Benjamin, a noção de literatura menor em Deleuze e Guattari, os pequenos objetos do mundo da criança em Gianni Rodari. Na literatura voltada para a infância, como em “Os anões de Mântua” (2004), Rodari estabelece a relação com o menor ao deslocar personagens de Rigoletto (ópera de G. Verdi) para uma meta-história, os anões, inconformados com seu tamanho, procuram o segredo de crescer. Emília, em “A Chave do Tamanho” (1942), de Monteiro Lobato, enfrenta problemas, porém do “apequenamento”, como Alice de Lewis Carroll. “Bem do seu tamanho” (1986), de Ana Maria Machado, apresenta uma dialética: ora a personagem principal é grande demais para certas coisas, ora é pequena demais. A partir dos fragmentos e resíduos de uma discussão sobre o menor na crítica e no texto literário este estudo se configura. Palavras-chave: Literatura. Infância. Tamanho. Menor.
Abstract: This article aims at establishing some theoretical connections with the thematic of the minor: the detritus in Walter Benjamin, the notion of Literatura Menor in Deleuze and Guattari, and the small objects of children’s world in Gianni Rodari. In the literature for infants, like “Os Anões de Mântua” (2004), Rodari attempts to establish the relation with the minor, dislocating the characters of Rigoletto (G. Verdi’s Opera) to a meta-story; the dwarves, unhappy with their size, search for the secret of growing up. Emília, in “A Chave do Tamanho” (1942), by Monteiro Lobato, faces problems of “apequenamento” (shortness), like Alice by Lewis Carroll. “Bem do seu tamanho” (1986), by Ana Maria Machado, presents a dialectic of size: Sometimes the main character is too tall for some things; sometimes she is too short. Therefore, this study focuses on fragments of a discussion about the minor in the criticism and in the literary text. Key-words: Literature. Infancy. Size. Minor.
Walter Benjamin, em Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a
educação, assinala que as crianças sentem-se irresistivelmente atraídas
pelos detritos, pelos restos e que nesses produtos residuais reconhecem e
ressignificam novos seres (pensamos na potencialidade de uma simples caixa de
fósforos na mão de uma criança ao se tornar um automóvel): “com isso as
crianças formam o seu próprio mundo das coisas, um pequeno mundo inserido no
grande” (2004, p. 58). Ao partir dessa premissa, interessa-me analisar como a
dialética do tamanho é discutida por alguns escritores, afinal, segundo Gianni
Rodari “o império da dialética estende-se também sobre os territórios da
imaginação”. Pensando numa dialética que se prolonga ao imaginário, proponho
uma dialética aberta, que não encontra, porém um elemento de equilíbrio, mas
que encontra na oposição dos termos seu ponto de desterritorialização. Como
diria Murilo Mendes, o problema não é ser ou
não ser, é ser e não ser ao mesmo
tempo – como ser pequeno e grande ou como crescer tornando-se pequeno.
Os estilhaços e os
detritos de discussões implícitas e explícitas sobre os usos dos tamanhos e das
proporções encontrados nas histórias, em pequenas frases ou pequenas expressões
servem para que a criança monte seu referencial – um referencial, na maioria
das vezes, muito confuso. A criança depara-se constantemente com um tipo de
contradição em relação ao tamanho na fala dos adultos. Para os pais é muito
cômodo e maleável essa transitoriedade entre ser grande ou ser pequeno para
determinadas coisas, mas como a criança absorve esta dialética suscita alguns
questionamentos.
Desde as primeiras
concepções na Grécia antiga, como arte do diálogo, arte de no diálogo
demonstrar uma tese ou mesmo como lógica, a dialética era considerada por
muitos, um conceito abstrato. Na acepção moderna, segundo Konder (1983), a
dialética é o modo de pensarmos as contradições da realidade e suas constantes
transformações. Entre defensores e críticos, o pensamento dialético da
inevitabilidade da mudança ainda incomoda muitos teóricos. Enquanto Heráclito
negava a existência de uma estabilidade no ser, Parmênides afirmava que a
mudança era sempre superficial, pois a essência do ser é imutável, esta linha
de pensamento, denominada metafísica, reprimiu historicamente a concepção
dialética.
Mesmo assim,
Aristóteles, a quem se deve boa parte da emergência da dialética, observou que,
por exemplo, damos o mesmo nome de movimento a processos diferentes e que todas
as coisas possuem determinadas potencialidades que se atualizam constantemente
(apud KONDER, 1983). Tal digressão leva-nos a questionar as contradições que
alguns conceitos assumem quando se reterritorializam em contextos
diferenciados. Ao estruturar uma reflexão a partir de uma dialética do tamanho
(atenta, porém à antidialética deleuziana, como apontou Badiou) que se pretende
aberta, procurou-se analisar algumas obras que discutem este tema tão vasto e
ao mesmo tempo tão restrito.
O próprio conceito de
tamanho possui potencialidades que se atualizam constantemente. Explico melhor:
ao falar de tamanho falamos das dimensões ou medidas de um objeto, para objetos
de uma dimensão, tratamos de comprimento, largura e altura; para objetos de
duas dimensões, a superfície e para objetos de três dimensões, o volume. Em
informática, tamanho é a quantidade de bytes que ocupa um arquivo; no campo das
medidas, pode ser a altura, o número de uma roupa, de um sapato ou mesmo ou
mesmo o tamanho da fome, numa medida subjetiva. Ao pensar nas potencialidades
da palavra tamanho, parece que o pensamento é sempre duplo e (des)proporcional:
pequeno/grande, maior/menor. Do latim tam
magnu, ou seja,tão grande, o termo
se desterritorializa de seu campo semântico e invade dialeticamente as
histórias que veremos em breve. Será possível observar que a noção de tamanho,
relacionada à qualidade ou à inferioridade está diretamente ligada a um valor
subjetivo e circunstancial – diferentemente do termo menor, que no senso comum
(e principalmente no trato com a literatura infantil) está ligado ao pequeno,
frágil, inferior, o comido, o perseguido, o devorado. Cabe a esta discussão o
conceito de literatura menor discutido
por Deleuze e Guattari (1977), menor não como inferior, mas como algo adaptado
em uma condição minoritária.
Para Deleuze não
interessa definir o que é a literatura, mas sim, saber como funciona – como a
máquina literária funciona. Há sempre um aspecto geopolítico, cultural e
linguístico ao falar de uma literatura menor, como se falássemos em uma língua
estrangeira dentro do próprio idioma (retomando Benjamin, um pequeno mundo
inserido no grande). Podemos fazer um paralelo com a literatura infantil - uma
língua menor dentro de uma língua maior, no caso a língua maior seria a própria
literatura. Embora à margem do cânone, a literatura infantil encontra seu ponto
de fuga e se desterritorializa. Até bem pouco tempo, a literatura infantil era
considerada como um gênero secundário e vista pelo adulto como algo pueril
(nivelada ao brinquedo) ou útil (forma de entretenimento) conforme as palavras
de Aguiar (2001). A valorização da dessa literatura, como formadora de
consciência na vida cultural das sociedades, é bem recente, completa a autora.
Ao falar de literatura
infantil, não temos como não falar da noção de criança, arraigada ao ser humano
e ao início de seu desenvolvimento (dos dezoito meses até os doze anos). Nesse
estágio da infância, marcado por um desenvolvimento físico, as fases do
crescimento são muito visíveis. O surgimento de discussões sobre o conceito de
infância está vinculado a uma percepção da especificidade do universo infantil
na modernidade, como demonstra os estudos de Philippe Ariès em A História Social da Criança e da Família (1981).
O menor, o pequeno, o impróprio para presenciar determinadas atitudes e falas
contrapõe-se a antiga noção de criança como um adulto em miniatura. Sobre esta
questão, Zilberman (1998, p. 15) destaca: “antes da constituição deste modelo
familiar burguês, inexistia uma consideração especial para com a infância. Esta
faixa etária não era percebida como um tempo diferente [...]. Pequenos e
grandes compartilhavam dos mesmos eventos, porém, nenhum laço amoroso os
aproximava”.
Sandra
Corazza, em Infância e Educação (2002),
discute também sobre “as gentes pequenas e o indivíduo”, o “corpo pequeno”,
traçando um percurso pela história da infância, vale ressaltar: “No começo,
ninguém prestava atenção às gentes pequenas: suas criaturas eram mais ou menos
como fantasmas, das quais não se falava, que quase não se enxergava e que, por
isso mesmo, também não incomodavam ninguém”, as tais pessoas “viviam soltas
pelos lugares: comiam e bebiam do jeito que dava; dormiam onde tivesse uma
beirada [...]. E assim iam vivendo, um pouco como os bichos, um pouco ao lado
das nativas: no máximo sendo consideradas umas delas em miniatura, uns
anõezinhos que ainda não tinham crescido [...].”( p. 58)
Chamar
alguém de infantil, em muitos contextos, pode servir como um insulto, como se o
termo abarcasse ao invés de ingenuidade e (in)experiência da tenra idade, um
similar de negatividade. Tal designação é circunstancial e também
contraditória, quando muito, pejorativa. Benjamin irá chamar a experiência, de
certo modo castradora do adulto, de máscara: a máscara do adulto chama-se
experiência.
Ana
Maria Machado, em Bem do seu tamanho,
aborda a dialética do tamanho: ora a personagem principal é grande demais para
certas coisas ora é pequena demais. Quem de nós já não viveu tal situação ou se
viu obrigado a proferir tais sentenças: você é pequeno demais para fazer isso ou você já está bem grandinho pra fazer aquilo. Helena, a personagem principal, muitas
vezes, tinha vontade de saber que tamanho era esse, pois às vezes, era grande e
pequena ao mesmo tempo. A mãe, logo no segundo parágrafo da história (MACHADO,
1986) já incita a dúvida:
- Helena, você já está muito grande para fazer uma
coisa dessas. Onde já se viu uma menina do seu tamanho chegar em casa assim tão
suja de ficar brincando na lama? (p. 5-6)
Então Helena achava que era bem grande,
mas então o pai dizia:
- Helena, você ainda é muito pequenininha para fazer
uma coisa dessas. Onde já se viu uma menina do seu tamanho ficar brincando num
galho de árvore tão alto assim? (p. 6)
Logo a seguir, o pai dizia:
- Menina, você já está muito grande para
se meter a engraçadinha e responder aos mais velhos. Desde quando uma criança
desse tamanhinho pode ficar discutindo assim, com essas idéias? (p.12)
Helena deparava-se, num
curto intervalo de tempo, com opiniões diferentes do pai e da mãe e ao mesmo
tempo contraditórias como pudemos observar nos fragmentos acima. Expressões
como muito grande e muito pequenininha acompanham sempre a
expressão do seu tamanho, expressão
que não por acaso faz parte do título da história. A menina sai então em uma
longa jornada para descobrir as coisas do mundo e colocar suas idéias em ordem
e, afinal, descobrir qual é o seu tamanho. Afinal, a seus olhos, estava em
constante metamorfose.
A história faz um
intertexto com Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, João e o pé de feijão e no
meio do caminho, Helena junta-se ao menino com apelido Tipiti (pois parecia
magro e comprido como um tipiti - um trançado usado para prensar a mandioca). Aos
olhos do menino, o tamanho tinha apenas um sentido literal, sentido posto em
questionamento por Helena ao afirmar que seu brinquedo, Bolão, às vezes
diminuía (passagem que pode passar despercebida a um leitor desatento).
O livro é permeado
pelas dúvidas de criança, dúvidas que Tipiti também passa a ter depois que
conhece Helena: “E a minha mãe, eu acho que ela também diminui. Quando meu
irmão nasceu, ela era muito maior do que eu. Agora eu acho que ela está menor”
(p. 19). Dúvidas como a de um amigo maior de tamanho e menor de idade ou das
proporções de uma fotografia. O livro brinca também com perspectivas, a árvore
no retrato saiu menor que os meninos: “quando está perto parece grande, quando
está longe parece pequeno” (p. 48), o medo de nunca mais ser o pequeno: “ser
grande sempre? Era muito sem graça” (p. 49) ou ainda nos leva a refletir que o
tamanho que temos por fora é diferente do tamanho que temos por dentro. A
problemática do tamanho e os medos e incertezas de ser criança põem em
questionamento a dimensão e a relatividade do indivíduo.
Também na ilustração
percebe-se tal peculiaridade, pois Bolão, um boi de mamão feito de abóbora, que
acompanha a menina em suas aventuras, se apresenta de diferentes tamanhos. Ora
Helena está com o brinquedo no colo, ora montada nele. O leitor híbrido do qual fala Luis Camargo (2003) deve estar atento a
esses detalhes e ter em mente que a ilustração não é mais mera representação do
texto, mas sim um texto paralelo.Camargo discute o conceito de imagem como um
texto outro, ao contrário da visão de imagem como prolongamento do texto.
O pensamento dialético
- observar contradições concretas e mediações específicas - reflete sobre a
contradição entre as partes e a diferença entre elas. Konder (1983, p. 47) bem
lembra que em todos os objetos com os quais lidamos existe uma dimensão imediata (facilmente perceptível) e uma mediata, que se constrói e reconstrói e
vai sendo mediado aos poucos. Ao falar de tamanho na literatura infantil, em
específico no livro de Ana Maria Machado, temos essas duas dimensões – a imediata, a própria contradição entre o
tamanho real e o tamanho subjetivo e a mediata,
posta pela história, no sentido de fomentar a reflexão sobre esta dialética.
Afinal de que forma contribuímos para o desenvolvimento da criança ao proferir
tais sentenças sem justificativas ou com argumentos totalmente contraditórios?
No livro de Marina
Colasanti, a passagem de tamanho reflete-se de forma sutil e metafórica. O homem que não parava de crescer
(2005), apresenta uma metáfora do amadurecimento e da independência por meio do
crescimento físico do menino para quem a pia foi um marco, pois ao alcançar a
visão de seu interior, o mundo do protagonista se alargou, depois, ao ultrapassar
as telhas, o menino, chamado Gul (semelhanças com a história de Gulliver), via o mundo de cima, pela primeira vez e
finalmente pôde ver o tamanho do mundo,
tornando-se finalmente homem. Gul era medido uma vez por mês, encostado na
parede, com uma fita métrica de costura. O personagem dessa história, como
Helena, questionava-se: “Será que existe uma tamanho que é o meu?” (p. 17),
completando que seu tamanho tinha vontade própria e que devido a este fato
deveria se adaptar a mudança de tamanho das coisas ao seu redor: a cama, a
meia, a mesa, ficaram todas pequenas. A inicial angústia do crescimento, pela
qual nós também passamos, a necessidade de adaptação e o desconforto em crescer
amenizaram-se com a visão do novo mundo. Com sua linguagem peculiar, Colasanti,
nesta história, como em muitas outras, faz com que cresçamos junto com o
menino, junto com a história e assim percebemos como ainda temos “muito
crescimento pela frente”.
Se por um lado o personagem de Colasanti “agiganta”,
Emília, em A Chave do Tamanho (2003),
de Monteiro Lobato, enfrenta problemas de “apequenamento”, como Alicede Lewis Carroll e tantas outras
histórias clássicas. A travessura da protagonista, querendo acabar com os
horrores da segunda guerra reduz temporariamente o tamanho das criaturas humanas. A Casa das Chaves é
um lugar imaginário regulador de todas as coisas do mundo, inclusive as guerras. Como as chaves não possuíam indicação,
aleatoriamente Emília escolhe justamente a chave do tamanho que reduziu a humanidade ao tamanho
dos insetos. Na lógica da boneca, reduzido o tamanho dos homens, a guerra
acabara: “Pequeninos como eu, os homens não podem mais matar-se uns aos outros,
nem lidar com aquelas terríveis armas de aço. O mais que poderão fazer é
cutucar-se com alfinetes ou espinhos! Já é uma grande coisa...” (2003, p. 7).
Ao referir-se ao apequenamento como uma
grande coisa, instaura-se novamente uma dialética relativizada (não tendo
um meio termo) do grande no pequeno, de
um lado a fragilidade do apequenamento impedindo grandes atos, de outro a
própria fragilidade e vulnerabilidade oriundas da diminuição do tamanho físico
- dos pequenos em estatura, incapazes de grandes atos. A noção de
pequeno/grande ganha novas proporções, como assinala Lobato, “A idéia duma
caixa de fósforos, por exemplo, era a idéia duma coisinha que os homens
carregavam no bolso. Mas com as criaturas diminuídas a ponto duma caixa de
fósforos ficar do tamanho dum pedestal de estátua, a
‘idéia-de-caixa-de-fósforos’ já não vale coisa nenhuma.” (2003, p. 11).
Isto pode ser observado na empreitada de Emília ao
atravessar o jardim, a adaptação ao novo espaço, antes minúsculo que se tornava
gigante e transformando um espinho em lança, segue a jornada, concluindo que a
melhor saída seria a adaptação ao novo meio, caminho inverso de Gul. Na
história é feito um plebiscito para decidir o tamanho da humanidade. Num
encontro com Hitler anunciam ao ditador que
o tamanho só seria restituído à humanidade se ele fizesse a paz e recolhesse as
armas ou os humanos poderiam ser encolhidos ainda mais. Mesmo contrariando
a decisão da maioria, Emília volta à Casa das Chaves e o tamanho é restituído à humanidade. Os fragmentos, os detritos de
guerra, vêm-se aqui lançados.
Alice, de Lewis Carrol, passa também
pelo processo de apequenamento ao tomar o líquido posto sobre a mesa e,
passando pela porta, insere-se num diferente mundo antes em miniatura aos olhos
de quem era grande. Ao contrário do processo de saída dos anões de Mântua ao
mundo dos gigantes, Alice toma um caminho no qual é preciso apequenar-se para
se inserir no mundo inacessível pelo tamanho que tinha. E Emília (na história
de Lobato) comenta: “aconteceu-me o que às vezes acontecia à Alice no País das
Maravilhas. Ora ficava enorme a ponto de não caber em casas, ora ficava do
tamanho dum mosquito. Eu fiquei pequenininha. Por quê?” (LOBATO, 2003, p. 11).
Diante do questionamento dos
adultos, pois acreditavam que as coisas que aumentaram de tamanho, Emília fica
em dúvida: “Será que tudo ficou grande e as criaturas estão do mesmo tamanho de
sempre ou tudo está do mesmo tamanho de sempre e fomos nós que diminuímos?
(LOBATO, 2003, p. 24). Novamente aqui, como no livro de Ana Maria Machado, o
adulto põe a criança em dúvida em relação ao tamanho, criando constantes
contradições.
Como não lembrar de Peter Pan, história escrita pelo
escocês James Barrie, em 1904 (originalmente uma peça para adultos), que conta
a história de um menino que fugiu de casa ao nascer, após ouvir uma conversa
entre os pais sobre como seria quando ele crescesse. O menino não queria
crescer e procura na Terra do Nunca essa impossibilidade de crescimento. O que
nos propunha Benjamin, de procurar a criança que reside em cada adulto é uma
viagem utópica e constante à Terra do Nunca, entre essas idas e vindas, viajamos
também nós, já adultos, pelos campos da fantasia.
Nos fragmentos e estilhaços literários sobre o
tamanho encontramos contradições: o menor, o maior, o pequeno, o grande, o
inferior e o superior - uma fala sempre fora do real tamanho das coisas. Estamos
sempre condicionados a um tamanho, um tempo. Um tamanho de texto, um número de
palavras, formatos, formas, moldes. Somos espremidos pelo próprio tempo,
tentamos crescer na medida do possível dentro de nossas caixas, mas elas sempre
têm um tamanho específico.
Gianni Rodari, autor italiano, no capítulo 30 da Gramática da Fantasia (1982), intitulado
“Viagem em volta de casa” questiona sobre o que é uma mesa para uma criança de
um ano: um teto que consequentemente pode virar uma casa, por exemplo. Segundo o
escritor, tanto a mesa como a cadeira que são para os adultos objetos consumados e quase invisíveis,
utilizados automaticamente, são para as crianças materiais de uma exploração
ambígua e pluridimensional, jogam com a superfície das coisas, exploram, fabulam,
experimentam e formulam hipóteses: “não cessa de fazer um uso fantástico dos
dados positivos que imagina” (1982, p. 98). As crianças em dado momento começam
a explorar a casa, os móveis e as máquinas que a povoam, segundo Rodari, e que
a experiência da criança atual habilita-a para realizar diferentes operações:
“a imaginação é uma função da experiência, e a experiência da criança de hoje é
mais extensa” (p. 101).
No capítulo seguinte, “O brinquedo como personagem”,
Rodari afirma que a relação entre o mundo dos brinquedos e o mundo adulto é
menos clara do que parece, assim, por um lado, os brinquedos aparecem por
redução, por outro, pela conquista (p. 103). Rodari atesta o caráter de redução ao desuso de certas coisas, como
por exemplo, o arco e flecha que se acomodaram como instrumentos de jogos e afirma
que até os objetos mais banais podem descer
do seu pedestal cotidiano: “um velho despertador quebrado pode virar
brinquedo, e talvez encare o fato como uma promoção” (p. 103). No próprio mundo
ampliado da criança existe uma tendência a desmontar, destruir e recriar,
segundo Rodari o brinquedo é o mundo que ele quer conquistar e com o qual se
avalia. As meninas com suas miniaturas de cozinha, os meninos com seus aparatos
de guerra que são detritos do mundo adulto. Explorando os brinquedos as
crianças criam também histórias e os seus teatrinhos e são necessários, para
que o jogo não se esgote rapidamente, mudanças de cena, salto no absurdo que
favoreçam as descobertas, afirma Rodari.
Ao questionar se esses tesouros descobertos pelas
crianças reduzem-se ou ampliam-se, Rodari (como outros autores vistos)
reporta-nos à dialética do tamanho, pois afinal reduzem-se somente na
perspectiva dos adultos, mas se ampliam para as crianças, são coisas que se
tornam brinquedos por oportunas metamorfoses numa “incessante miniaturização do
mundo adulto”, como aponta o escritor.
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_____. Infancionática: dois exercícios
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KONDER, Leandro. O que é dialética. 6.ed. São Paulo: Brasiliense, 1983
RODARI, Gianni. Gramática da
Fantasia. São Paulo: Summus,
1982.
__________ [i]
Daniela Bunn (Florianópolis/SC), professora e tradutora, tem experiência na área de Letras e Pedagogia, com ênfase em Literatura e Ensino, Literatura e Artes, Leitura, Literatura e Infância, Metodologias de Ensino. Mestre em Literatura pela UFSC/SC onde atualmente trabalha com literatura infantil no Doutorado. Contato: danibunn@yahoo.com.br.
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano III - número 8 - teresina - piauí - janeiro fevereiro março de 2011]