Devagar eu me acomodava no táxi, o motorista com pena, Quer uma ajuda, Obrigado eu consigo,
me doíam as costelas quebradas, a boca ardia com os pontos, o motorista
perguntava sempre, Manaus se coloca entre a gente com suas luzes baças e um
pedaço de cozinha da minha casa feito de uma geladeira sempre na escassez, de
vez em quando eu resmungava e o motora, Desculpe as ruas estão cheias de
buraco, com essa calma perto da meia-noite, a cidade nem parece ter vivido uma
tragédia comandado por um doido que, há anos, ocupava o destino do Estado,
Era na década
de 80, numa quinta-feira tinha acordado por volta das 4 e às 7 os pães já
estavam prontos e ensacolados sobre a mesa, camisa e pés sujos de trigo, e uma
nuvem de sonolência que me invade. Quando acabo de tomar o meu mate e a fatia
de pão integral, o motorista põe a vista na ferida da minha boca, Você é
professor? Ouço então o ronco do carro e o velocímetro na marca dos 80, Sou e
fui espancado na avenida por causa da greve, então esse motora já sabia tudo
sobre a batalha, Estava no momento com um cliente e desviei do percurso, ainda
cheguei a ouvir gritos, essas coisas de violência entre manifestantes e polícia,
Aí tomei
banho, vesti uma camiseta da greve, logo depois outro grevista amigo apareceu e
eu coloquei os pães no banco de trás do Fusca, segue agora esse odor do pão que
me convida a um cenário fora de Manaus. Estou numa cidade do interior, de casas
com telhado baixo e telha de barro, Manaus tem o amianto que cria limo e
temporais de chuva, lá a torre da igreja se levanta uma harpa de tijolo furando
o vento e um som potente de um sino, mais à frente, num beco com inclinação há
casas de taipa, à direita é a casa do meu tio Anísio. Homem de bigode aparado e
a voz que leva pão para três ruas da cidade, meu tio é padeiro, de manhã e à
tarde com uma cesta de bambu na cabeça vende pão Bahia. Com ele aprendi a
profissão, deixo o hospital e me locomovo para algum ponto de Manaus.
O táxi entra
numa artéria para a Cidade Nova, o bigode do taxista está longe dos meus
encantos, tem umas pontas enferrujadas de grisalho, a fumaça do cigarro dele
devaneia no espaço do veículo e o cheiro de remédio que exala da minha boca.
Entro na
Tapajós, logo me vem a imagem de uma sindicalista fogosa, amante dos
bolchevistas e da ilha de Fidel, leva-me para a cantina do Sindicato, diante de
nós dois copos de café e dois pães úmidos de margarina. A mulher exibe essas
coxas que ativam a saliva, uma boca com um batom laxante, um cigarro
incandescente e um modo de me tratar Ô meu bem, ô meu bem.
Come o pão e
pede bis para o café, e como não toco no meu pão, Você não quer? Não me sinto
bem com pão com bromato, E que troço é esse? O bromato é uma substância química
para melhorar o pão mas não é bom pra saúde, bom mesmo só o pão do tio Anísio,
E no café da manhã o que você come, Preparo o meu pão, ou tapioca, É
interessante, eu queria a receita, Padeiro é uma arte que vem do sangue, mas
posso te ensinar. E foi assim que me tornei o padeiro na dieta dela, e um dia
ela me liga, Comprei todo material, anota o endereço.
Enquanto eu
dizia, Jogue o óleo, o sal, o farelo e o trigo na bacia. Olhava o ventilador no
teto, a janela que dava para um igarapé cheio de garrafas pet. Incorpore tudo
agora, mais farinha. Era preciso desligar o ventilador, vou ao interruptor.
Polvilhe a mesa e sove agora. Isso! Por mais dez minutos, use o rolo. E a minha
aprendiz, Estou pingando. Tomo a toalha e removo o suor, a maciez dos toques da
minha mão, Obrigada, Corte a massa em pedaços e deixe na forma, Que maravilha!
Estou feliz. As mãos dela têm resíduos do óleo e da sobra, e meu olho que
desvio oculto flagro as coxas dela num short curto, que me avivam as enzimas fermentadas
da boca.
Entro num
ônibus lotado, na mão os meus produtos. Era uma sexta e me escapei de 10 tempos
chatos, compridos sem ninguém querer estudar, desço do ônibus e confiro o
número da casa. O apartamento fica no segundo andar, porta 201. É aqui, digo
enxergando a tarde quando o sol se esvai já anunciado pelos cânticos das rãs,
toco a cigarra, estou tenso, ela abre a porta. Usa short curto, uma blusa
cavada e os pés descalços que tocam a cerâmica, é essa visão que me vem dela e
me transporta para alguma área do corpo dela, mas o táxi dá uma parada brusca e
me tira de um jogo sedutor, Carro sem gasolina, Você quer dizer que a gasolina
faltou e não posso chegar ao meu destino, E o pior onde estamos parece que não
tem posto, Então me ajude a descer, ali tem um telefone. Disco o número, mas
ela custa atender, Olha amor estou na Torquato, Menino onde tu estavas, A greve
me levou ao hospital e perdi tudo, os pães foram esmigalhados e ainda teve um
soldado, Que soldado? As minhas fichas já estão quase no fim, Então diga um
ponto de referência, mas a ligação cai.
Instalo a
minha venda na avenida e contava com Tânia, que não apareceu. Um sindicalista
barbudo, de cima de um carro, achincalhava com o governador em meio aos
aplausos. E não custou tanto, para a gente ver.
Um homem chama
um subordinado e diz, Pode descer o cacete, Mas sua Excelência há muita
criança, E daí. Era o Boto, a voz dele se espalhava, batia na mesa e tinia como
o colino do meu avô nos troncos das bananeiras. Era diferente do boto que armava
um cenário e arrancava as garotas dos salões. Áspero de rosto largo e bigode, a
voz se confunde com a polícia contra a minha aula. Na batalha do igarapé. E do
leme na quilha do Negro, olha as minhas costelas quebradas, a boca com essa
atadura no momento em que o taxista diz, Esse Boto só não tem escama como o
outro.
Na casa de
Tânia de pequeno fico grande, de ausente fico presente, de solto fico seu
cativo. Deixo a bagunça esparramada, se chego com enfado, logo vem desenfado,
ela me dá o chuveiro na toalha, o perfume no cheiro, as unhas no aparado, os
cabelos no penteado. Depois da novela me enfia no quarto e vem com esta, Me
banho e logo te dou as mamas. E não é que Tânia sugere as tetas quando
rompe nua, nem as roupas do banho mais, e a casa cheia do seu perfume fatal.
Logo apaga a lâmpada do quarto e a voz dela, No escuro tudo é mistério. Aqui
tudo é maneiro, como na casa do meu tio.
E, por falar
nele, meu tio me queria dono do nariz, um dia se dirige, Você já aprendeu o
ofício, aqui tem sua cesta e ganhe o seu dinheiro, vá para a rua do mercado,
que cuido das outras. Mas, nem cheguei a vender os meus pães, um menino se
aproxima, Coloca a cesta no chão, É pão Bahia, pergunto, mas de uma outra parte
saíram outros meninos que me deram uma rasteira enquanto a cesta era levada e o
guarda, na avenida, esmigalha todos os meus pães.
A última vez
que vi Tânia, Manaus tinha voltado ao mundo pré-histórico das chuvas, nenhum
jornal tratava mais da greve, nas escolas o retrato do Boto competia com a
poeira e as teias de aranha. Tio Anísio havia morrido em defesa da sua cova e a
cesta ficou de poeira na despensa. Do colégio atendo o telefone, Vem agora pago
o táxi, Tânia volta à minha vida de padeiro e dela tiro o meu fermento que me
satisfaz no almoço. Subo os degraus, nem preciso mais de endereço, tudo está na
cabeça, o número 201, a cama que cheira a lavanda, o escorredor de prato que
escorre a água da minha caneca, pão escuro num armário que agora só aparece nas
quintas-feiras quando penso nela, a vista de um igarapé com detritos imundos
que permanecem e até mesmo a delicadeza das mãos dela sovando um pão.
A sindicalista
é uma mulher de gesto, cuja fome sexual nasce num estouro imediato, aprendeu as
minhas manias de nordestino que custa a conviver com o lado da floresta.
Foi só entrar,
o cheiro dela eu adivinhava em todo espaço da casa, mas desconfio dessas malas
e sacolas encostadas na parede, Me traga a toalha, E o que representa essas
coisas de viagem, ela prefere o silêncio e nada me diz, e a sindicalista se
interfere, Vá ao banheiro para tirar o-de-ruim da escola. Naquela noite me
segurei para não chorar nos braços dela com essa dúvida de laços partidos.
Primeiro a gente se ensaboa no banheiro, depois o motorista consegue dois
litros de gasolina, mas não consegui um contato.
Logo mais me
faz sentar na cerâmica sobre uma pilha de jornais da greve, Tire a roupa,
a voz dela era um sussurro, Que eu tiro a minha também, a claridade
entrava pós-mortiça pela janela, Se chegue mais, ela abre os braços já
no chão com uma pele tensa atrás de qualquer coisa dentro de mim, Parece que
derramei o teu copo, o liquido foi chupado pelos jornais, Não te
preocupa, o jornal também ia absorvendo o suor do ventre dela, Hoje
ficamos aqui na cerâmica, ao lado havia um despertador, Que bom, e
também as cervejas pelo chão, Você me ama mesmo padeiro, as palavras
foram saindo atropeladas, Claro que amo, os jornais farfalhavam por
baixo da gente, Me dê mais amor, o motorista não consegue entender meu
gesto de silêncio, Claro que te entendo, e logo enceta um diálogo que me
represa, Em que parte da Cidade Nova você mora? Ouço o ruído do
despertador ao lado dela, Algum professor morreu na greve? Baixo a
cabeça, Não sei desses dados, e de novo ela me pergunta, Você me ama
mesmo, a voz dela já era um sussurro tão fraco e dependente, Porque se
não fosse a greve eu não teria me entregado com tanto ardor. E calou. E
você não teria sido demitida. Corria uma aragem fria, Sim, a lista dos
demitidos está aqui no chão, a bebida já tinha saturado demais as nossas
veias e interferido no vermelho das pestanas, o cheiro ruim do igarapé saía de
uma paisagem triste, de manhã ao acordar o sol me confunde no rosto, não vejo
mais malas nem sacolas, só um pedaço de papel escrito e um retrato dela, Estou
num barco de volta a Novo Airão.
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João Pinto é contista que mora em Manaus, de Luzilândia, PI. Já publicou três livros de contos. O texto em questão pertence a Contos de uma aula no vermelho, livro que aborda a sala de aula.
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano IV - número
12 - teresina - piauí - janeiro fevereiro março de 2012]