Eu
não gostava de acordar de madrugada para ir com minha mãe ao trabalho. Era
sempre muito frio e tinha que subir na carroceria do caminhão para chegar à plantação
de café. Minha mãe era justa comigo, não me deixava trabalhar até o sol deixar
o dia bem quente. Enquanto eu, quase sempre dormia debaixo dos pés de café. Ela
colhia, peneirava e ensacava o café. Trabalho horroroso. Nunca mais quero
voltar ao campo. Odeio essas histórias de que no campo encontramos a paz, a
harmonia, a frescura do dia, o reencontro com nosso interior. Mentira, conversa
fiada, isso tudo é pura baboseira. A vida no campo, pra mim e pra minha mãe,
foi acordar de madrugada, passar um frio desgraçado, encarar aquela plantação
de café ainda molhada do orvalho que congelava as mãos e ganhar uma porcaria de
salário que mal dava pra comer. A vida no campo é uma farsa. Sertões, matas,
canaviais, montanhas, cobras não gosto nem de pensar. Me dá arrepios. Ainda
mais quando lembro nas cobras que atormentavam minha imaginação e perturbavam
meu sono. Minha mãe dizia: tome cuidado com as cobras. Malditas, odeio
cobras. Ainda bem que nunca fui picado por uma delas. Já imaginou? Se eu as
odeio por perturbar meu sono, como seria se fosse envenenado por uma? Não me
lembro de outras crianças nas plantações de café, apenas eu? Estou pensando
agora, como minha mãe fazia para que minhas irmãs não ficassem sozinhas em
casa? Devia pedir para alguma vizinha. Não sei, não estou certo disso, preciso
perguntar pra minha mãe. Me lembro que um dia levei minha mãe pra ver um show
da Daúde. Minha mãe sempre foi protestante, mas ficou encantada com a imagem de
Daúde, que estava mais para um orixá feminino do que para Lutero. Eu vi o
encantamento nos olhos dela, ela sorriu, mexeu as cadeiras na cadeira do
teatro, talvez deva ter sentido alguma inveja de Daúde, por lembrar que um dia
já havia desejado aquela vida pra ela. Ela, minha mãe, sabia fazer
perfeitamente os acordes Dó, Ré, Mi e Fá. Ela também não gosta da vida no
campo, eu tenho certeza disso, ela nunca me disse nada, mas eu sei. Ainda bem
que ela não precisa mais carregar latas d´água na cabeça para beber e lavar
roupa. Também não precisa trabalhar em casa alheia, não amamenta mais a prole
dos outros. Ela não gosta do seu tempo de juventude. Quanto a minha juventude?
Ah! Não tenho do que reclamar, nunca comi tanta menina na minha vida como o
tempo em que estive na Universidade. Adoro a Universidade, conversas, mentiras,
boatos, leituras, cachecóis, música, transas, Black Power, dreads locks, MPB,
Caetanos, Gils, Chicos, Cartolas, bares, festas, transas, namoros, fuxicos,
pesquisas, transas, amores, desencontros, filmes, palestras, perfumes,
passeatas, mentiras, transas, debates, conferências, nada de cobra, nem de
plantação de café, nada de humilhação sem saber se defender. Adoro a
Universidade, aprendi a me defender melhor no pé da cidade. Eu gosto é de
cidade grande, da Universidade, de Spike Lee, Cornel West, Anthony Kwame
Appiah, transas, encontros, desencontros, olhares, mentiras, falsidades, mas
muito melhor do que aquelas cobras me atormentando. Quem gosta do campo é
cobra, eu gosto é da cidade.
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Amailton Magno Azevedo é professor do Depto de História da PUC-SP. Pós-Doutorado pela Universidade do Texas em Austin.
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano IV - número
12 - teresina - piauí - janeiro fevereiro março de 2012]